O canhão do Paraguai

Todos sabemos que a moral só vale em tempos de paz: na guerra, não apenas o assassinato é permitido como é incentivado e até premiado. Matar um semelhante em nome do Estado é motivo de grande honra. Mesmo o roubo e o furto, tão condenados em nosso meio, são permitidos quando um Estado consegue esmagar outro pela força das armas. A esse roubo ou furto chamarão "troféu de guerra", e os ladrões terão seus nomes perpetuamente exaltados.

O Brasil, que alguns acham tão pacífico, já se meteu em guerras por aí, já encorajou o assassinato de seus vizinhos e ainda celebra os roubos que cometeu em nome da pátria e outras abstrações. Da Guerra do Paraguai, por exemplo, roubamos muita coisa, inclusive um canhão chamado de "O cristão", nome que não causa nenhum espanto, pois também eram cristãos os que promoviam a guerra, e já não há nenhuma crise de consciência em um cristão que mata.

O que fazer com um canhão? Na falta de oportunidade de usá-lo contra quem nos desagrade, o jeito é deixá-lo em um museu, como prova dos nossos feitos de outrora, do "nosso passado de absurdos gloriosos". E já tratamos esse canhão como coisa tão nossa, tão adaptado ao clima nacional, que já o tombamos como patrimônio histórico nosso - não vá alguém destruir o fruto do nosso roubo!

E, no entanto, é um canhão do Paraguai - mas verdadeiro, diga-se. E agora o Paraguai anda pedindo que lhe devolvam o canhão. Por certo, o Paraguai não tem melhor projeto para ele que o Brasil: vai expor e achar que há algum motivo de glória em um canhão. Tem todo o direito, afinal, o dono faz o que bem quiser do canhão que é seu. E o Brasil mesmo reconhece que é um canhão do Paraguai, mas, vejam que interessante, nem por isso pensa em devolver.

Em outras palavras, o Brasil admite que roubou, orgulha-se do roubo e quer perpetuar a memória da sua ignomínia. Houve um especialista em roubos dessa natureza dizendo que devemos nos atentar ao risco de perda ou destruição desses produtos roubados, caso os devolvamos aos seus legítimos donos. Esse especialista, por certo, acredita que o Paraguai é composto por Guaranis do tempo do Cabeza de Vaca que não sabem como cuidar de um canhão.

Ele mesmo nos assegura que o Brasil não tem nenhuma obrigação legal de devolver o que é dos outros. O Direito Internacional não vê nenhum problema em ficar com o que foi saqueado de outros países, aí estão os museus britânicos, repletos do produto de saques. Só se o Brasil quiser, em um gesto de grande bondade, é que pode devolver aquilo que tomou e que não lhe pertence.

Ah, assim é a lei, assim é a moral, assim os bons costumes da guerra.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 15/08/2023
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