Story

O despertador do celular tocou às oito horas, como todo dia de segunda a sexta desde que acabara a pandemia. Desperta de um sono sem sonhos, deparou-se com os olhos azuis da gata que dormia na cama com ela. Ainda sonolenta, desativou o despertador e procurou ver, sem êxito, se ele publicara stories. Desde a cirurgia refrativa ela havia perdido a acuidade visual para perto. Como dizia aos amigos, tinha trocado seis por meia dúzia, a miopia pela hipermetropia.

Não precisou colocar os óculos. Na tela do smartphone, apenas notificações do trabalho que já começara sem ela. Tinha esse privilégio de chegar um pouco mais tarde no emprego, uma vez que sua presença era imprescindível somente depois das dez, geralmente. Nenhum story. Muito cedo para um casal feliz de férias.

O ritual semanal de tomar café, fumar um cigarro, alimentar os gatos e tomar banho. O gatinho que gostava de ser acarinhado na pia do banheiro. O vidro temperado das janelas que esmaecia a luz do sol. As plantas do jardim tremulando silenciosas, açoitadas pelo vento lá fora. As paredes brancas, sem quadros, fitavam-na impassiveis. "Preciso lavar o All Star amarelo", disse para si mesma, quebrando por um momento o silêncio do apartamento. As papoulas brilharam em seu rubor ao vê-la passar. Ela sempre admirava aquele vermelho aveludado das flores. Sob os óculos escuros, seus olhos recém -operados ardiam. Pensava se aquilo era normal porém esquecia em seguida. Era uma linda manhã e ela estava apaixonada.

O dia inteiro, no trabalho, ela ficou à espreita. Nada. Atualizava o Instagram na tela do computador para ficar decepcionada. Ele não dava notícias. Teria acontecido alguma coisa? Nenhuma vez ela pensou em ligar. Nem sonhando. Que ousadia. O que diria então? "Ei, você está em uma cidade charmosa com a sua linda esposa e não posta sequer uma foto?" Tinha graça. Deitada na cama, ela riu da ideia enquanto o café cheirava. As papoulas adormecidas tinham um vermelho escuro quando ela passara de volta e as tocara com um raro prazer. Era de noite que ela tinha mais vida. Lia e fumava até altas horas. Aquela espécie de amor não pedia, não desejava, satisfazia-o saber-se corajosamente declarado. Sua honra era sua vitória. Mas ela gostava de ter notícias dele. Não o seguia, não o procurava, apenas olhava os seus stories com a doce humildade dos amantes indesejados.

Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 14/09/2023
Código do texto: T7885745
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