A outra Face
Às oito horas da noite o Amor voltou. Ela que estivera vazia, oca, ferida, recebeu aquela visita como a de um velho amigo. Ela que sempre fora boa, luminosa, benquista por sua ternura, examinou o ser à sua frente e gostou do que viu. Apodrecido, raivoso, rejeitado. O Amor queria vingança.
Ela serviu dois cálices de vinho e passaram a confabular. Como ele ousava ostentar aquela vida perfeita? Juventude, dinheiro, viagens, uma bela mulher. Declarações de amor de revirar o estômago. O Amor riu com escárnio, ele nunca suscitara aquelas coisas. Eram fantasias de humanos. Ela sabia, não sabia? Os homens não conheciam o amor. Imaginavam-no bom e belo, generoso, sempre disposto a perdoar. E ela? O que ela desejava?
Acendeu um cigarro e tragou com vontade. Olhou demoradamente o seu punho e desejou, com um só golpe, quebrar aquele quadro de felicidade perfeita. Quem era ele para ter direito à perfeição? Ele, um traidor, que fora em busca dos seus sonhos deixando-a para trás. Não existia lugar para ela na vida dele e isso era demais para suportar. Desejou que a mulher morresse. Ah, como seria bom se a mulher morresse. Ele se perderia. Se quebraria como um espelho que cai. E se ela o trocasse por outro? Se o humilhasse? Também seria bom. E cada gole de vinho deixava-a mais enleada, saboreando com volúpia a sua vingança imaginária. Tinha conhecido a outra face do amor, a bondosa, a só elogios e abraços e carícias. Mas essa, monstruosa, era melhor. Era a verdadeira. Cada infelicidade dele seria uma vitória para ela. Quanto mais baixo ele caísse, mais alto ela riria. Não tinha a superstição dos tolos, de que atraímos o que pensamos. Que se explodissem as pessoas.
Aos seus pés, o cão dormia.
Já era madrugada quando o Amor partiu, deixando-a completa, equilibrada, o bem e o mal coabitando em seu coração, amalgamados. Luz e sombra. A claridade do dia e o abismo da noite.