Autorretrato

Incomodava-a sobremaneira pensar em si própria. Para que isso não acontecesse, refugiava-se nos livros, adorava Clarice Lispector porque ela a transportava para um outro mundo muito particular. Porém bastava parar de ler para que o autoexame viesse assombrá-la. Tendências suicidas, tinha-as demais. Já tentara uma vez, aos vinte anos. Lembrava-se da sensação da morte escolhida: era como se lhe tivessem tirado um fardo pesado dos ombros e ela fosse então algo leve, tranquilo e desinteressado. Levaram-na para o hospital pensando que a estavam salvando, ela que só desejava inexistir. E de novo aquele peso. Aquela angústia. Seria a dor o castigo por estar sempre fugindo da vida? As idas ao psiquiatra pareciam-lhe inúteis, como alguém que nasceu com pernas tortas e tenta dolorosamente e a ferro desentortá-las. "Talvez o meu irmão alcoólatra seja quem vive", pensava, "E eu apenas sobreviva em minha tristeza funcional." Sentia como se um destino inevitável puxasse-a para o abismo, e nessa queda seu corpo iria cair, seu espírito iria cair até o último dos mundos. Pensava em abandonar-se. Soltar as amarras. Ver no que ia dar. Mas de antemão já imaginava; seria uma bêbada quarentona dentro de casa, dando trabalho para os pais idosos. De bem cuidada, independente e bonita a desmazelada, viciada e decadente bastaria dizer chega. Mas sabia que o contrário não seria tão simples. Por isso lutava, dia após dia, contra o desejo de se abandonar.

Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 19/09/2023
Código do texto: T7889506
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