Misto quente

Uma das grandes delícias da minha vida na infância e adolescência era o receber alguma visita dos tios do interior do Paraná. Ou os tios de Minas. Era um sentimento de felicidade profunda, dessas inimagináveis e inesquecíveis. As mais vibrantes emoções, coisas de pulsar a alma, ter esperanças e fartura de bons sentimentos. Alguém ia nos visitar e levar notícias dos outros parentes, sempre com alegria e as saudades quentes e vibrantes marcando presença na minha alma para sempre. Sim, para sempre, pois eu nunca me senti tão emocionalmente completa quanto nos tempos daquelas tão esperadas visitas.

Com o tio Dante, o farmacêutico e intelectual de imensa sabedoria, que me iniciou na apreciação da literatura brasileira e na interpretação dos acontecimentos políticos, íamos, meu irmão e eu, ao centro da cidade para uma visita à saudosíssima Botica Ao Veado de Ouro, na rua São Bento. Aquela farmácia do século XIX me convidava a respirar São Paulo de uma outra forma, dos tempos do café e dos italianos, do exaustivo trabalho braçal e da esperança de novos tempos...

Mas invariavelmente, antes ou depois da visita à Botica, parávamos para comer um misto quente com guaraná Brahma geladinho no restaurante Campestre, na rua Quintino Bocaiuva (uma homenagem àquele senador republicano que dizia, acertadamente, que a Constituição do Brasil deveria ter apenas um artigo: QUE TODOS OS BRASILEIROS TENHAM VERGONHA NA CARA. Mas isso é outro assunto. Fecho parênteses.

Voltando ao restaurante Campestre. Comíamos sentados ao balcão e não nas mesinhas. Para mim aquela cena era extraordinária, única, especialíssima. O nome do restaurante era uma referência ao local onde o meu tio e a minha mãe haviam nascido, lá no sul das Alterosas. Então, tudo era revestido de poesia, de saudade, de amor às histórias de vida.

Agora mesmo fiz um misto quente para o nosso lanche da noite. Quando abri a sanduicheira, o misto estava idêntico àquele do restaurante Campestre. A mesma textura, a mesma coloração do pão... tudo me fez voltar ao passado.

Hoje, o tio Dante, de tanta importância na construção do meu conhecimento e das minhas opiniões políticas, que me ensinou a ler nas entrelinhas em plena ditadura, está praticamente se despedindo dessa existência. O meu irmão já passou para o outro lado da vida há quase duas décadas.

E eu continuo por aqui a tentar compreender um pouco do humano, suas belezas e suas aberrações, seus encantos e desilusões, com o respeito ao passado, a valorizar a memória, a me encantar com a história construída desde quando os meus ancestrais vieram da Itália. E continuo a caminhar pelas ruas de São Paulo, onde não há mais o restaurante Campestre e muito menos a Botica ao Veado de Ouro que, por uma forma criminosa, teve que fechar suas portas.

Com misto quente ou não, eu fico à procura do tempo, das coisas do coração, da ternura e do doce olhar brilhante e compreensivo do meu amadíssimo tio Dante, companheiro de longas e proveitosas conversas pelas madrugadas. Ele me ensinou a ler muito da alma humana, das coisas do Brasil. Uma eternidade inteira é pouca para lhe agradecer e reconhecer sua sabedoria e beleza.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 29/09/2023
Reeditado em 02/10/2023
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