EU SEI

Nestes tempos, que a reclusão domiciliar foi imposta ao povo, para não se expor ao vírus maldito, veio uma lembrança à minha cachola, e como dizia meu velho pai

----- Não acredito que o homem foi à lua, isso tudo é truque

Eu, em referência a essa pandemia digo ─ “eu não acredito seja uma obra da natureza, para mim foi criado pelo homem”.

A lembrança dessa convicção, que ele (meu pai) tinha sobre o assunto lunar, me fez lembrar, que eu debatia com ele, dizia que a televisão mostrou ao mundo o homem chegando à lua, ele simplesmente retrucava:

─ “Tudo truque da televisão, eu sei!”.

Estávamos no ano de 1986, meu pai, o velho Benedito Jorge, conhecido por Didi, que inclusive, já contei que foi ferroviário, e que laborava na porteira, na passagem de nível dos trens da Paulista, ali no bairro da Barreira, em Jundiaí, não estava bem de saúde, então, minha irmã baldeou os dois, mãe e pai, para a casa dela, em São Paulo, na Vila Cisper, assim poderia cuidar melhor dele. Nesta época eu trabalhava na cidade de Caieiras, e aos finais de semana corria pra casa dela.

Era o mês de maio daquele ano, num sábado, a família toda na casa da minha irmã, e minha esposa, à época, inclusive tinha muito jeito para tratar de doentes, ajudava a cuidar do “seo” Didi, que agradeceu muito a ela por aquele desvelo, porém, na manhã daquele dia o velho foi piorando, piorando, já nem falava direito, deu aquele desespero em todos, meu irmão colocou o pai em seus braços, como se fosse um nenê, e levou até o meu carro, e partimos, os três irmãos, para o hospital do Tatuapé. Deu entrada no pronto-socorro, colocaram-no numa maca, num corredor tomando soro, e lá ficou o resto da manhã e parte da tarde, de vez em quando um de nós driblava o segurança e adentrava aquele corredor pra ver o velho Didi, e ele ao ser perguntado como estava dizia, meio sem força

─ “To bem” com um sorrisinho sem cor.

O tempo ia passando, ninguém falava nada, nossa paciência esgotando-se, até que resolvi falar com a atendente, e disse que queria levar meu pai imediatamente para um apartamento particular do hospital, porque ele não estava recebendo os necessários cuidados médicos. O Doutor de plantão no P.S. disse que se eu o retirasse dali seria por minha conta e risco, e fez-me assinar um documento. Ora, que risco, se ele não estava sendo cuidado? somente um soro e nada mais. Não sou médico, mas estava aos meus olhos a situação.

Após esse trâmite, colocaram meu pai no elevador, e ele foi levado para um apartamento particular, cujo andar nem recordo o número; subimos por outro elevador, acomodamos o pai na cama, mas ele pediu-me para leva-lo ao banheiro, amparou-se em mim e fomos caminhando lentamente, na hora, lembrei-o, que no mês seguinte seria a Copa do Mundo de futebol, e disse

─ Pai, tem que ficar bom logo, mês que vem é a Copa, e nós vamos assistir.

Ele respondeu

─ Não sei não “fio” se vai dar. Respondi - claro que vai dar.

Chegamos diante do vaso sanitário, ainda brinquei:

─ Ah! Não vai querer que eu tire seu pingolim pra fora, né? Ele fez um ar de riso, e respondeu que não.

Terminado o xixi, levei-o de volta para cama, minha irmã informou que teria que ir ao posto de atendimento, assinar os papéis da internação no apartamento. Lá fui eu.

Estava às voltas com papéis, cheque caução, essas rotinas que os hospitais mantêm, quando minha irmã vem desesperada dizendo para voltar ao apartamento, o pai não estava bem.

Larguei tudo no posto, e corri para o quarto, chegando vi que ele respirava com dificuldade, eu não sabia o que fazer, passei a mão naqueles cabelos branquinhos

─ Pai, pai, sou eu, pai!

Ele, abriu o olho, elevou o olhar, e disse

─ Eu sei...

E fechou o olho novamente.

Nisso chegou a tropa médica, sob comando daquele médico do pronto-socorro, retirou-nos do quarto, e imediatamente o levaram para UTI.

Ficamos ali sentados num banco, esperando notícias, até que aquele médico passou por nós, e nem nos olhou, ou fingiu não ver, minha irmã disse para ele: ─ “foi negligência ou não foi doutor?”

Ele ao ouvir isso, voltou, apontou o dedo para ela, só deu tempo dele dizer

─ Escute aqui, minha senhora! ─ levantei-me do banco e voei pra cima, queria bater muito nele, meu irmão segurou-me. Ainda bem.

Naquela madrugada de maio, o senhor Benedito Jorge faleceu.

Hoje fico lembrando o quanto ele queria dizer naquele “Eu sei”

EU SEI que o homem não foi à lua, EU SEI que é você, e EU SEI que estou morrendo.

“Eu sei” Foram suas últimas palavras em vida.

Pai, hoje eu sei que você, ainda, me olha.

Nota do autor: Os que viveram esse episódio, já não estão mais entre nós fisicamente: Alice (mãe), Osvaldo (cunhado), Ademilde (irmã), Cidão (irmão), E no mesmo dia que meu pai faleceu, chegou a notícia que o irmão da minha mãe (meu tio Oscar) também havia falecido, ou seja, num só dia ela perdeu o marido e o um irmão.

Alguns anos depois, eu, num mesmo ano, perdi irmã (Mide) e irmão (Cidão).

05/05/2020