Meu Buenos Aires querido...

Algumas pessoas deixam marcas nas nossas vidas, e é por isso mesmo é que são especiais. O protagonista deste “causo” marcou a minha infância com as suas histórias, as quais se transformaram com o tempo, em lendas familiares. Se verídicas ou não, deixo aos outros a dúvida. Para mim, aconteceram... Depois de enfrentar leões e outros desafios pelas ruas de Rio Grande de São Pedro, o nosso herói resolveu ser necessário viajar, ampliar os horizontes para além do São Gonçalo e ter contatos com outros povos e suas culturas. Enfim, renovar e arejar. E assim aconteceu. naqueles tempos, Buenos Aires era a referência sul - americana, capital de um país rico e em enorme efervescência social e cultural,contando com a marcante presença do "Generalíssimo" Peron e sua carismática esposa, a "Evita". Pois foi para lá que o "baixinho" resolveu viajar depois de pensar bastante no assunto. Aos amigos, assegurou que não teria problemas: arranhava um belo portunhol aprendido através das ondas curtas e dos programas das rádios Mitre e Colon e além disso, tinha uma longa experiência em dialogar com as "muchachas" do cabaré Mangacha, algumas delas oriundas dos países do prata e alhures. Portanto, sabia tudo de Argentina e argentinos, mais especificamente de argentinas. É claro que essas coisas todas aconteceram quando o nosso herói ainda era solteiro, pois foi um marido exemplar, segundo ele mesmo afirma, fato confirmado por amigos e parentes, mas a fama de grande dançarino de tangos e boleros ficou, o que também nunca se preocupou em desmentir. Mas isso não importa. O que importa é que a viagem acabou acontecendo e lá se foi o casal para o estrangeiro. Não se sabe se foram de navio, que naquela época se chamava vapor, ou de avião pela Panair. Alguns invejosos andaram espalhando, por pura dor de cotovelo, que o casal foi de diligência, via Santana do Livramento, o que não é verdade. Enfim em Buenos Aires, a hospedagem aconteceu em imponente e luxuoso hotel localizado nas cercanias da Casa Rosada, centro da capital portenha, onde o casal chegou com enorme bagagem. De repente, o nosso herói se deu conta que a maleta onde estavam guardadas as suas "roupas de baixo" havia desaparecido! Não teve muito tempo para se preocupar o "Baixinho, que por sinal, detestava o apelido: estava sendo chamado á portaria para preencher "la tarjeta" !

- Buenos dias, senhor... Su nombre?

- Por supuesto: (arriscando um portunhol). Mi nombre es ......... - Mui bien senhor... - Ahora, su apellido... Bom! Dizem que aí começaram os problemas para o baixinho, que como já foi dito, odiava o apelido que carregava desde os tempos de infância.

- O que? Eu não tenho apelido nenhum. Para que querem saber esta coisa de apelido? Não sou homem de ter apelidos. Fique sabendo que o meu nome é... Pronto! Ponto final. - Pero Senhor, nosotros todos tenemos apellido...

- Não tem "pero" e nem "meio pero". Já falei que não tenho apelido e se o sr. insistir com isso, vou me queixar á gerência, certo?

O funcionário, também já irritado com a situação, resolveu passar para outro item:

- Entonces senhor, ahora su direcion ...

- Direção?

- Que história é esta de direção? Não sei o que o sr. pretende, mas isto está ficando muito estranho. Tem mais: não tenho direção e se tivesse, não ia dar para qualquer um, ainda mais no estrangeiro. Sabe-se lá o que vocês querem fazer com isto. Não vou responder coisa nenhuma! Os ânimos ficaram alterados entre o funcionário do hotel e o nosso herói, que como todo o baixinho, também era brigão. A situação foi finalmente resolvida pelo gerente do lugar e pela esposa do viajante, que conseguiram a muito custo acalmar os contendores, prestes a chegarem as "vias de fato". Por falar em fato, ou fatos, o fato é que a tal "tarjeta" ou ficha não foi preenchida, tendo o hóspede sido admitido excepcionalmente sem endereço e sobrenome pelo gerente, para evitar mais problemas com o estrangeiro brigão. Ainda furioso com o acontecido, deu-se conta o Baixinho que não tinha cuecas para trocar e resolveu sair para comprar algumas. Já na "calle", ao perguntar em um precário portunhol para alguns passantes onde poderia comprar "ceroulas", foi estranhamente encaminhado á uma fruteira das redondezas! ! ! Apesar de achar aquilo tudo muito esquisito, mesmo assim resolveu entrar e comprar as tão necessárias "ceroulas". Ao fazer o pedido e ser atendido, lhe trouxeram ameixas !!! Aí o baixinho achou que aí já era demais! Já não bastava a gozação do hotel? Tirando do "arquivo" os poucos, mas eficientes palavrões em espanhol que conhecia, xingou o dono do lugar, um corpulento correntino com cara de degolador, que não gostando nem um pouco do que ouviu, resolveu bater no baixinho, que só foi salvo mais uma vez pela intervenção da esposa, que o resgatou do lugar rapidamente para a segurança das “calles”. Dizem que só mais tarde, ao beber uma "cueca-cuela" e informado que ameixas por lá são chamadas de ciruelas, o homem se acalmou. Para compensar, parece que "abafou" ao dançar tango com a espôsa ,em um cabaré da “Boca”, para delírio dos portenhos, admirados com aquele sujeito de terno branco e "panamá" que falava um idioma desconhecido e vagamente parecido com o espanhol e que não tinha "apellido" e nem "direcion". Diz-se que até hoje a façanha é contada pelos becos da "boca". A lenda do "brasileño toquito" que não trocava de cuecas, que talvez fosse agente secreto, domador de leões, grande dançarino e "mui macho por supuesto", faz hoje parte do folclore portenho... Parece que o homem agora anda tomando aulas intensivas de espanhol e está mais vivo e brigão do que nunca. Dizem até que renovou a carteira de motorista, arrumou o passaporte, tirou o "panamá" e o terno de linho branco do armário e que anda prometendo aos amigos voltar qualquer dia destes á Buenos Aires para acertar umas contas que deixou pendentes por lá...

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