A gota, o banco e as tangerinas

Você percebe que a idade chegou quando, além das constantes dores geradas por moléstias de nomes estranhos, tais como gota, bico de papagaio e esporão, você precisa ficar pra cima e pra baixo fazendo uma bateria de exames e visitando consultórios médicos.

A cena é típica. O sujeito, em razão do périplo que é forçado a fazer por entre as clínicas, laboratórios e afins, normalmente é visto com uma inseparável pastinha contendo um espécie de histórico do moribundo. É sempre assim. Basta circular pelos bairros onde há grande concentração de locais de exames, para flagrar um cidadão vagaroso e de ar preocupado ostentando o dossiê médico.

Hoje sou eu quem passa por isso. Percorro o bem fornido circuito de Icaraí, bairro célebre por reunir uma interminável quantidade de estabelecimentos do gênero. Acho que isso se deve ao adensamento de possíveis clientes, já que também reúne muitas pessoas na chamada melhor idade.

Aliás, não sei o porquê do termo "melhor". Deve existir alguma vantagem oculta que só alguns têm acesso. Ainda não cheguei nessa parte, mas confesso que já me vi tentado a entrar em fila de prioridade no mercado e no banco.

Por enquanto, considerando meu lugar de fala, só posso dizer que não experimentei efetivamente a parte do "melhor". Transitar pelas ruas, com passadas claudicantes (estou mancando), sentindo fortes dores no calcanhar e no ombro, não pode ser visto exatamente como um benefício.

Os malefícios, porém, vieram a cavalo. Depois de dar o diagnóstico, o médico praticamente me anulou: cortar a gelada, carnes e - maldita gota! - o bolinho de bacalhau.

Cabisbaixo, perambulei a esmo pela Gavião Peixoto. Próximo ao Campo de São Bento, parei numa barraquinha que vendia frutas. Havia uma aglomeração de idosos no local, o que me fez concluir pela qualidade e baixo preço. Além disso, diante do meu quadro, fui subitamente invadido por um sentimento solidário que me atraiu espontaneamente para perto deles. Semelhante atrai semelhante. Comprei tangerinas, uvas e pinhas.

Na volta, passei por dentro do Campo de São Bento e me concedi o direito de sentar em um de seus bancos. Abri o saco das tangerinas e comecei a saborear a suculenta fruta. Ao lado, dois senhores de mais ou menos uns 80 anos queixavam-se reciprocamente de lamentos pessoais. Um deles eu conhecia de bigode; já o outro, de chapéu. Quase me aproximei para desabafar. Contive-me. Preferi a companhia das tangerinas.

Eis o auge da minha decadência: a gota, o banco e as tangerinas.

Guilherme Lino
Enviado por Guilherme Lino em 11/11/2023
Reeditado em 13/11/2023
Código do texto: T7929434
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