Encontro de 2 Mundos Opostos.

Trabalhamos no extremo do sul do sul de Minas Gerais, beira da rodovia Fernão Dias, somos os porteiros do Estado, 1ª autoridade mineira que os caminhoneiros oriundos do sul encontram quando trafegam para Minas ou para a parte superior do mapa do Brasil.

Lá vem o caminhoneiro típico, sem camisa, barriga se perdendo para fora da calça, palito na boca, fumando - é possível conservar o palito e fumar - entrega-me as notas e deseja bom Natal, eu não respondo, pego as notas, fecho a janela para ficar livre da fumaça e do bafo de pinga. Vem de Santa Catarina e vai para Caculé-BA, transporta arroz. Baiano não come só farinha não!

É dezembro, mês de férias, os caminhoneiros trazem seus filhos para amenizar a solidão da cabine nestas longas viagens. Agora uma linda menina se aproxima, olho para seus olhos azuis, ela escolhe o meu guichê - este é o segredo para atrair - a nota fiscal denuncia, vem de Horizontina-RS (cidade de Gisele) e vai para Natal-RN, em dezembro para Natal, brinco com ela:

- Você é prima da Gisele Bundchem?

- Bah! Que prima que nada.

- Mas, você é mais bonita que ela. Digo sem fazer favor algum.

- Obrigada! Responde com o sorriso mais bonito do que o do comercial da Colgate. Ganhei meu dia.

Encosta um caminhoneiro com a camisa do Corinthians, coisa rara hoje em dia, provoco-o:

- Com esta camisa só na segunda. Ele não acha graça. Não é bom mexer com os corintianos atualmente.

Um caminhoneiro vem de Ipatinga com carga de ferro. Pergunto para o caminhoneiro mineiro:

-Tá levando o quê? Ele percebe a malícia da pergunta e responde:

- Uai! O caminhão tá levando ferro, eu, nada só!

Chegam caminhoneiros em comboio, ficam em fila no meu guichê, não notam os colegas ao lado, eu sinalizo para eles, mas não perco a oportunidade de uma piadinha de gaúcho:

- Por que os gaúchos gostam da andar um atrás do outro?

- Que isto tché!? Somos nos cinco todos os machos de Pelotas - que me perdoem os pelotenses, mas são os seus conterrâneos que disseram, eu só repasso.

De madrugada uma senhora caminhoneira (isto existe, são duas na Fernão Dias) vestida com uniforme da empresa, levemente maquiada, com brincos discretos, chega e entrega as notas fiscais em ordem, com as vias da fiscalização já separadas. Não está fumando, não tem palito na boca, exala um perfume suave e com certeza não urinou no pátio. Como seria bom se todos os caminhoneiros fossem mulheres.

Em seguida, noto uma irregularidade numa nota fiscal, mando o caminhoneiro encostar, ele se arrepia comigo:

- Seu fiscal, não posso, tenho hora marcada para entregar esta mercadoria, se não, vou pagar multa. Diz com a voz alterada.

Considero, que ele já rodou 1.200 km de Porto Alegre até aqui e rodará mais 500 até Belo Horizonte, passando por estradas esburacadas, sendo achacado por outras autoridades, tendo, possivelmente, prestações do caminhão atrasadas, premido pelo tempo. Lembro de um provérbio que diz:

"A fala mansa aplaca a ira".

Respondo, com toda a calma:

- Tinha hora marcada... Agora o dono da mercadoria vai ter que pagar uma multa e o imposto, e você vai ter que aguardar aqui até o crédito ser liquidado. Ligue e mande-o entrar em contato.

Saca do celular e em pouco tempo o seu cliente se explica, informo da irregularidade, ele põe a culpa na mocinha expedidora da nota ( sempre a culpa é da mocinha). Pouco depois a mocinha com voz chorosa liga para mim, dizendo que vai perder o emprego. Só neste mês é a terceira ou a quarta com a mesma ladainha, tenho argumento para todas as desculpas, só não, quando eles falam que são trabalhadores e não estão roubando como os nossos representantes em Brasília. Concordo com eles, mas sigo inexorável com a difícil missão de cobrar o que é de todos e de aplicar as penalidades, muitas vezes por mera ignorância desta legislação que a cada dia fica mais complicada.

Este é o dia-a-dia do fiscal de transito de mercadorias, ao sair de casa tem que trocar de mãe, assim como o juiz de futebol, e trocar o coração por uma moela, pois a missão é espinhosa. Não nos cabe sentir pena, julgar se a infração foi sem culpa ou não, se por ignorância ou não, se o contribuinte vai quebrar ou não, se a mocinha vai perder o emprego ou não, se o motorista não tem dinheiro para o almoço ou não. A coisa é assim: Se ajoelhou tem que rezar.

Mesmo assim existe uma camaradagem entre nós.

Defranco
Enviado por Defranco em 26/12/2007
Reeditado em 27/09/2013
Código do texto: T792989
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