Eu não sei lavar louça

Sou um bebê de apartamento nascido in vitro. Um bebê perfeito, filho da revolução dos arranha-céus, da tríade, beleza, dinheiro e poder.

Em quanto isso a “mãe” joga seus filhos na lagoa, e a outra no lixo. O “pai” estupra sua própria filha e o padastro mata sua enteada depois de enterrar a cunhada. Mas eu entrarei na escola e saberei que os homens descenderam dos macacos e explicarei tudo isso com muita ciência.

Nem precisa ser Darwin para encontrar o elo perdido, basta ligar a televisão ou sair na rua.

Uma senhora teve seu filho dilacerado pelas ruas, arrastado por carros. Uma moça teve sua bolsa roubada, enquanto a prostituta espera na esquina da rua que tem o bar com o melhor sanduíche de pernil da cidade. Comercializamos carne morta e viva. Mulheres e homens ganham para simularem o ato de dar a vida, mas leis e fiscalização tentam interromper a profissão mais antiga do mundo. Depois mamãe e papai tentam em vão rir das comédias mal escritas do cinema e da televisão.

Enquanto existir demanda e oferta existirá o bendito teatro da geração de vida e Keynes continuará bradando seu hino neoliberal aos seus seguidores. Mas minha religião irá explicar que sou um espírito evoluído, e que tenho uma missão. Depois de uma sessão descobrirei ter sido amigo de Keynes e este agora se encontra em uma dimensão sagrada, para onde irei assim que cumprir minhas penas vivendo com símios nascidos do pecado original.

Com minha idade já escuto músicas... No meu mini Ipod, toca algo triste para alimentar a minha melancolia precoce. Escuto o som de um homem míope que gostava de leitura e odiava gente. De repente o mundo acaba e seus óculos quebram... No mundo não há ninguém a não ser ele, os livros, os óculos e sua visão distorcida.

Escuto a música enquanto penso que um dia talvez terei um bebê como eu e serei mais criança do que ele. Venderei, poluirei, consumirei e assim serei. Talvez a água não exista mais, ou haja uma invasão do oceano através do derretimento das calotas polares. A ameaça alienígena não será necessária para nos matarmos em massa. As brilhantes criaturas do espaço vivem em paz umas com as outras. Só lá existe brilho, no meio dos astros, aqui apenas tentamos transformar mortais em divindades.

Aprenderei um dia que os livros servem, além de enfeitar, vender e ocupar espaço nas bibliotecas e livrarias. Saberei que eles contêm conhecimento, alma e alguns até amor, algo pelo qual as pessoas se dedicam, estudam e fazem suas vidas.

Mas uma coisa eu não saberei fazer: lavar louças... Contratarei uma pessoa apenas para isso e os demais afazeres domésticos, pois assim como meus pais não saberei limpar a minha própria sujeira.