A MORTE O VISITOU MAIS CEDO

Estava sentado vigiando o irmão Bráulio há cerca de dois minutos. Não fez nenhum outro tipo de movimento — talvez para não assustar o irmão, ou para que ele não suspeitasse de sua presença no local. Escondido e olhando através dos buracos da parede, Brito, o irmão mais novo, analisava as ações do mais velho. Há alguns meses, demonstrou desânimo de viver e descrença na humanidade. Vinha com papos estranhos nas reuniões de família, e o pessoal começava a suspeitar de uma morte iminente. Bráulio tomava muitos remédios: ansiedade, pressão alta, dores no corpo, inchaços, etc. Todos eles tinham horários regrados e tinham usos bem definidos de acordo com o médico.

Por morarem muito longe, Brito decidiu começar a visitar o irmão mais vezes por mês. Se antes ele fazia visitas todo primeiro fim de semana do mês, agora chega de surpresa, podendo vir duas ou até três vezes no mês. Isso incomodou um pouco a Bráulio, que dizia que estava numa espécie de Big Brother e que não precisava de tantos cuidados assim. Brito se sentia estranho ao entrar na casa do mais velho, ao observar tantos quadros expostos em preto e branco e ao ver o pó existente nos móveis.

Ofereceu-se para limpar a casa tempos atrás; os pedidos foram sempre negados, porém.

Fez um barulho indesejado.

— Pensei que estivesse no banheiro. — Disse Bráulio, sem surpresa.

— Eu aproveitei e passei por aqui. — Disfarçou o irmão. Ele pegou o pano de prato e deixou em seu ombro, e virou-se de costas. Sabia que Brito começaria a falar logo em seguida.

— Estou me sentindo um velho gagá. Um velho que precisa ser observado o tempo inteiro. — Reclamou Bráulio. Seu irmão estava lavando a louça.

— Porque talvez de fato seja, Bráulio. Meu velho, quando vai aceitar que a idade chegou? — Questionava Brito, já impaciente. Há cerca de quinze anos tenta fazer o irmão entender que o tempo dele já passou.

Sua geração, há muito tempo, não é mais o foco das reportagens e pesquisas de televisão. Também, não é mais a que é mais levada em consideração nos debates políticos da atualidade. Quando ele começa a dizer “na minha época”, pronto! Já começam a revirar os olhos, e a dizer que o tempo dele já se esvaiu.

— A gente não é nada, Brito. A gente é apenas pó. Tudo já estava aqui e continuará aqui. Eu irei, e você ficará. Tudo permanecerá igual. Igual! — Começou a refletir. Brito já estava habituado, e sempre deixava o irmão comentar os seus pensamentos. — Fui à praia nestes últimos dias e encontrei uma senhora de cadeira de rodas aproveitando a vista. Ela me contou diversas histórias da vida dela, dentre elas, a de que a casa dela era a praia. Ela se sentia em casa! Era o lugar onde ela encontrava paz, Brito.

Brito terminara de lavar a louça, e havia sentado no banco para começar a secá-la com o pano de prato. Observava o quanto havia de sujeira no local, e o quão desarrumada a casa estava.

— Ela era atleta, Brito. Atleta! Ela era linda, mostrou-me fotos. Sabe o que ela é agora? Uma velha. Uma senhora, que disse para mim mesmo que está aguardando a partida.

— Que horror!

— É a vida, Brito. Você ainda não entende isso porque é novo. Mas ela já fez o que pôde. Não consegue fazer mais nada direito. Os filhos dela a largaram. Deixaram-na sozinha. — Disse Bráulio, se emocionando. Brito para de lavar a louça e abraça o irmão.

— Não é o seu caso, Bráulio. — Disse, tentando confortá-lo. O mais velho o encarou com uma cara de profunda tristeza.

— Você sabe que é. Meus filhos não me visitam há dois meses. Dizer que não tem tempo é a mais fajuta desculpa. Eu sempre arrumei tempo para os meus filhos, mas eles não arrumam tempo para mim. Não há nada no mundo que lhe impeça de ver os próprios pais, caso queira. — Disse, deixando o mais novo em silêncio. — Você vive na sua casa colorida, com a presença de seus filhos e seus netos. Mas eu, no auge dos meus oitenta e oito anos, nem meus netos eu consigo ver crescer direito. Só por fotos. Isso me dói muito. A solidão! Não consigo me movimentar, ir para muito longe. Eu sempre visitava meus netos quando eles eram pequenos. Ficaram adolescentes e me esqueceram. Os pais não fazem mais questão.

— Eles ainda te ajudam com o financeiro?

— Quem se importa? As contas estão inteiras, mas o coração está partido. Ai, Brito! Sinto que faço hora extra. Eu já queria ter ido. Por que tenho que sofrer aqui?

— Eu já te disse para vir morar comigo, irmão. Eu e Lourdes podemos te ajudar a se reerguer. — Propôs o irmão mais novo, que estava terminando de secar a louça.

— Eu já disse que não quero ser fardo, não quero ser o extra além do que já sou. Aqui eu já estou indo muito bem.

Ficaram em silêncio por alguns segundos. Brito enfraqueceu. Não conseguia ver o irmão naquele estado. Pensou, diversas vezes, em colocar o irmão numa casa de idosos ou chamar psicólogos para fazer consultas com ele em casa. Seria irônico se Brito, de oitenta e quatro anos, tentasse colocar o irmão quatro anos mais velho na casa de idosos.

— Além de que Lourdes e você têm seus próprios problemas. Não quero ser mais um. Já resolveram a infiltração do teto?

— Estamos vendo isto, mas temos um quarto a mais.

— Não preciso. Já tenho o meu.

— Com a dificuldade que você tem de se locomover? — Deu risadas, mas Bráulio não achou a mínima graça. Continuou gargalhando por mais alguns segundos, até o mais velho soltar a seguinte frase:

— O médico disse que estou gordo. Preciso fazer uma dieta.

— E? Já iniciou?

— Já. Estou em jejum. — Quando Bráulio disse isso, Brito havia aberto a geladeira. Foi no momento certeiro! Não encontrara nada além de comida velha e estragada. — Isso faz parte.

— Você está pirado, irmão. Pirado! Há quantos dias de jejum?

— Uns dois dias. Está bom, vejo que perco peso. O ser humano é engraçado.

— Por quê?

— Temos que comer para sobreviver, mas se comermos demais, podemos morrer. Quero morrer comendo algo. Acho que morrerei feliz. Ou bebendo. — Encerrou Bráulio. Depois disso, o irmão mostrou cansaço ao falar, e Brito resolveu respeitar. Deu um último abraço, guardou o resto da louça e disse que voltaria dali a três dias para trazer uma visita.

Um último abraço.

Aquele foi o último abraço.

Quando retornou, encontrou tudo desligado e do mesmo jeito que havia deixado. Bráulio estava morto há três dias, como havia pedido: bebeu todos os remédios guardados na casa, aqueles que estavam à mostra na cozinha (do tratamento de suas doenças), e outros mais fortes que estavam escondidos em seu quarto. Nunca se perdoou por não ter reagido depressa. A última visão que tem do irmão mais velho, é a dele sentado numa cadeira de balanço na cozinha, desabafando sobre o que havia visto em seus últimos dias.

Quando Brito trouxe a visita ao irmão, chegou tarde demais. A morte o visitou mais cedo.