A Natureza

— Fique tranquilo, hoje não irei fazer macarrão. — Havia garantido a senhora Abreu, para seu filho mais novo. Ele detesta o macarrão. Prefere comer um prato só com misturas ou só de saladas do que comer macarrão no prato. Sempre foi assim. A do meio já é mais liberal, come de tudo. E o mais velho é o que possui a alimentação mais restrita.

Neste dia, Juliana havia preparado para seus filhos um prato que todos gostam. Seu esposo estava a trabalho, logo, não participaria da refeição.

— Mamãe, por favor, me passe o sal. — pediu a do meio, chamada Julienne. É uma homenagem à mãe, num francês inventado pelo pai. O mais velho sempre brinca com a irmã, porque seu nome é o mesmo nome que leva um tipo de corte a faca usado na culinária.

Aquele dia era diferente. A iluminação da cozinha estava apagada, por teimosia de Juliana, que queria economizar nas contas. O mais velho, Arthur, irritou-se.

— O clima lá fora ficará terrível. O tempo já está feio! Tudo cinza! E vocês ainda querem deixar as luzes desligadas? — dizia, estressado. Ninguém o respondia, todos continuavam comendo. — São 14h26 da tarde! E está tudo escuro!

— Há alguns anos ocorreu de forma pior. Eram 15h da tarde e estava como se fosse de noite. Hoje ainda está de dia, só escuro. — respondeu a mãe.

Abreu manteve-se calado durante toda a refeição. Observava com seus olhinhos novos e de pouca idade a feição dos irmãos e da mãe, e ouvia atentamente a discussão. Estava acostumado a ter refeições com discussões.

— E se você sabe disso, por que não nos deixa ligar a luz? — Arthur se levantou, e foi para o interruptor. Ligou a luz e a mãe enfureceu. Disse que ela que mandava na casa, e que se ele quisesse algo diferente, que fosse embora. Abreu se sentiu triste por dentro, mas já não externou esse sentimento. Julienne se mostrava, durante toda a discussão, indiferente. E de fato não ligava para o que estava acontecendo. Simplesmente continuou comendo.

Arthur disse para a mãe que ela precisava se preocupar com o que importava, e não com pequenas besteiras. Disse que ela deveria perder menos tempo no chuveiro, que deveria parar de usar os produtos elétricos para alisar o cabelo e que a casa continuava uma zona porque ela era a porca do chiqueiro.

Juliana pedia e pedia para que o menino fosse para o quarto, que ficasse de castigo. Rebelde, Arthur desafiava as ordens da mãe, e não a obedecia.

— Você não é ninguém para me mandar para o quarto ou falar o que tenho que fazer. Se eu vejo coisa errada, eu irei falar!

— Arthur! — exclamou Juliana. Ela se levantou, pegou o menino pelos cabelos e o jogou contra a parede. Abreu começou a chorar neste momento, e depois desceu de sua cadeira e foi para o banheiro. Julienne continuava comendo, pegou o celular da mãe e começou a gravar a cena, deixando o aparelho escondido atrás de um pote de margarina.

As discussões entre mãe e filho não são novas. Certa vez, há alguns anos atrás, a vizinhança se preocupou com Juliana quando Arthur a ameaçou com faca, após a mãe pedir para que o menino se separasse de Olga, seu primeiro grande amor. Também houve discussões quando Arthur descobriu que a mãe manteve durante seis anos um caso escondido com o primo de seu marido.

As discussões iam de simples falas num tom grosseiro a xingamentos e ameaças. Julienne deixou a mesa e foi para a sala, mas ainda deixou o celular gravando toda a cena. Abreu, a essa altura do campeonato, já tinha dormido.

— Eu não queria ter nascido aqui. Ter sido seu filho. Você é uma mãe horrível. — dizia o menino, cheio de dores, enquanto apanhava de sua mãe. Ela o esmurrava, dava socos em seu rosto e chorava ao mesmo tempo. Sentia desgosto, raiva e decepção. O menino depois começou a gritar e a pedir socorro. Foi quando Julienne, com seus 14 anos recém-completos, pediu para que a mãe parasse. Sem respostas, ela entrou no meio da discussão, levando um soco na barriga, mas conseguindo parar tudo devido ao choque e surpresa.

Sentou-se no sofá e ali ficou por alguns minutos. Chorava e chorava, mas era um choro mudo. Arthur estava vermelho de raiva e sangrando pela boca. Era melhor que ninguém lhe dirigisse a palavra, assim teriam menos problemas. O pai era quem conseguia acalmá-lo, mas ele só retornaria no dia seguinte devido a um plantão no trabalho.

A mãe, percebendo a gravidade da situação, avisou o filho.

— Está vendo? Está vendo!? Olha o que você me fez fazer. — disse, culpando-o. — Você desperta o pior de mim, garoto. O pior!

— Eu preferia morrer para ficar longe de você. Queria muito que hoje fosse o meu último dia, para que eu não continue tendo que te aguentar e sofrer. — ele respondeu. Olhou para sua mãe com um olhar de desprezo e foi para os fundos. Neste momento, cruzou com Abreu, que tinha dado uma rápida soneca. O garotinho de 8 anos fez massagens e carinhos na irmã, e os dois decidiram ir brincar na frente da casa. Juliana ficou no quarto murmurando contra o filho mais velho, planejando formas de como poderia expulsá-lo de casa. Queria chamar o marido, mas não podia. Logo, gravou uma chamada de voz para o esposo e o mandou pelo celular, para que ele ouvisse quando possível. Dizia tudo sobre a discussão, que estava cansada, e que queria paz. E disse-lhe que queria esclarecer alguns pontos não resolvidos (provavelmente se referia às traições) para que eles tivessem um futuro próspero. Contou-lhe que o amava, e que queria que ele voltasse logo do trabalho. Deitou-se na cama e olhou para o teto, desejando que aquele dia acabasse logo. As falas de Arthur, suas atitudes e as ameaças que ele fez contra ela fizeram com que ela perdesse o amor pelo mais velho, que nem sabia que o homem que estava trabalhando nem seu pai biológico era. Desejava a sua morte, uma forma de fazer com que ele fosse embora da casa sem muito esforço. Morria de amores pelo mais novo, que parecia ser tudo o que ela sempre sonhou. E sempre teve medo de Julienne, que era o amor do pai. Arthur não era amor de nenhum dos dois.

Ela adormeceu. E Arthur também.

Nunca mais acordaram. Naquele mesmo dia, algumas horas depois, iniciou-se uma grande tempestade. Postes e árvores caíram em diferentes bairros, e a casa deles foi uma das vítimas. Abreu e Julienne, que brincavam do lado de fora, foram socorridos na hora que a árvore iniciou a sua queda. Gritaram e pediram para que os homens chamassem seu irmão e sua mãe, mas a passagem estava bloqueada. Outras árvores caíram, e a casa ficou toda destruída.

Arthur morreu como queria.

Juliana conseguiu a morte do filho.

A natureza cumpre desejos. Mas ela só não diz como irá cumpri-los.

A morte levou não apenas um, mas dois. Se tem espaço, por que não?