O morto sem óculos

Os dois chegam ao velório. Com ar compungido, aproximam-se do caixão. Nota-se certo constrangimento.

- Ele tá diferente, não?

- Até demais. Certeza que é o mesmo morto?

- Geraldo, está escrito na entrada.

- Mas não se parece com o Geraldo.

- É, acho que está faltando alguma coisa.

- Os óculos!

- Óculos?

- Sim, o Geraldo sempre usou óculos.

- É verdade, e agora está sem.

- Não deviam ter tirado.

- Mas para que o morto precisa de óculos?

- O Geraldo era tão míope que, sem óculos, não veria nem a luz.

- Lá isso é verdade...

- Se é pra homenagear o Geraldo, precisavam deixar os óculos.

- E aí enterram os óculos junto?

- Bom, se quiserem, podem colocar numa caixinha.

- Não sei... Provavelmente, ele tirava os óculos para dormir.

- Não é a mesma coisa, aqui ele está sendo exibido.

- Mas...

- Sem os óculos, parece que estão exibindo outra pessoa.

- Questão de costume mesmo.

- Eu vou deixar isso no meu testamento.

- Deixar o quê, criatura?

- Que me deixem de óculos no velório.

- Você nem é tão míope quanto o Geraldo.

- E o estilo? Tenho uma imagem a zelar, mesmo depois de morto.

- Tem graça...

- Falta de respeito com a imagem do morto.

- Prometo que avisarei sobre os óculos, se você morrer antes.

- Obrigado. Tirar os óculos do morto míope... Onde já se viu?

- Deixa para lá. Vamos indo, já deu para ver o Geraldo, né?

- Sim. Com meus próprios óculos que a terra há de comer.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 30/12/2023
Reeditado em 30/12/2023
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