Hitler: uma ameaça a Caicó *

* Texto extraido de "As Crises da Vida", editado em novembro de 2007

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Outro fato guardado dessa fase é o dia da eclosão da Segunda Guerra

Mundial: 19 de setembro de 1939, se não me falha a memória. Um reboliço na cidade e lá em casa.

O meu pai chegou em casa anunciando que Hitler tinha invadido a Polônia. Eu nem sabia quem era Hitler e muito menos a tal de Polônia. Pelo nome, devia ser uma mulher, dona de algumas terras de roça. Sim, porque na inocência dos meus seis anos, comparei o fato a outro ocorrido com uns parentes que se arranchavam aos sábados, dia de feira, na casa de minha avó materna.

Um reclamava que suas terras foram invadidas pelo gado do outro e comera sua lavoura. Este se defendia culpando as cercas mal conservadas pelo vizinho. Caso fossem reparadas, garantia não haver mais invasão.

Na minha mente de criança, armei sem querer e sem saber, o seguinte silogismo: a culpa da invasão do vizinho Hitler era de Dona Polônia que não conservou suas cercas.

Sem querer e sem saber, também havia criado uma metáfora, ao dimensionar o silogismo do plano rural/provinciano para um contexto universal.

Por isso, não entendia o alvoroço que a notícia provocara. Em pouco tempo se espalhou pela cidade e todos ficaram preocupados. E agora, o que seria do Brasil, e de Caicó?

As beatas cuidaram de dobrar as rezas e fervorosas socorriam à Santa

Bárbara e São “Jiroime” protetores dos desvalidos. As comadres de

minha mãe a procuraram para saber de que se tratava, mas ela de nada entendia.“Segundo Julio”, respondia-lhes, “é uma guerra no estrangeiro, mas Caicó corre perigo”.

A população brasileira de um modo geral desconhecia os acontecimentos ocorridos no exterior no campo da política internacional, a não ser as filtradas pelos noticiários das estações de rádios estrangeiras, como a BBC de Londres e A Voz da América dos EE.UU. Estações de Rádio brasileiras, como a Radio Nacional, a Rádio Sociedade da Bahia, Rádio Club de Pernambuco retransmitiam os noticiários daquelas estações estrangeiras, mas havia poucos Rádios receptores em algumas cidades do interior do Brasil.

Mesmo assim, na maioria delas havia luz elétrica somente num

pequeno período noturno e os rádios à bateria contavam-se nos dedos.

A desinformação quanto ao que se passava no exterior era geral, salvo para pouquíssimas pessoas em função da condição de vida sócio econômica ou profissional.

Nessas circunstâncias pouco também se sabia sobre Hitler e seus propósitos expansionistas; suas teorias sobre geopolítica, arianismo etc. As grandes potências mundiais calculavam mal as projeções para o futuro da humanidade na possibilidade daquele ex-cabo do exército Austríaco assumir o controle da Europa e expandir seus dominós para o resto do mundo.

Meu pai, apesar de bem informado por acompanhar os noticiários nos

rádios dos amigos de certa posse, não tinha capacidade intelectual para processar (como se diz na área da informática) as notícias veiculadas e tirar suas conclusões.

As notícias eram repassadas da forma como ouvidas. E dentro desse

raciocínio lógico, se Hitler teve a coragem de invadir a Polônia, poderia

muito bem fazer o mesmo com outros países, inclusive o Brasil.

De igual forma, as preocupações de minha mãe e as dos caicoenses de um modo geral tinham sentido, pois provinham do espírito de conservação, inato em todo animal, inclusive no homem. Provinha também da própria ignorância sobre a dimensão do acontecimento.

De minha parte, continuava sem saber a razão de uma briga de vizinhos causar tanta preocupação aos adultos.

Mas, ao contrário, o raciocínio deles era outro: se “um homem prevenido vale por dois”, segundo o adágio popular, uma cidade prevenida vale muito mais. Então as autoridades caicoenses tomaram suas precauções.

Não sei de quem partiu a iniciativa, mas o “Tiro de Guerra” desfilou nas principais ruas da cidade, numa demonstração de força a serviço da população, caso o Grande Ditador resolvesse invadi-la.

Felizmente, eram outras suas intenções.

Mas o desfile patriótico do garboso contingente militar encheu de brios

a população, como um todo, e as crianças em particular, como era o meu caso. Intimamente, estava satisfeito com a invasão porque somente assim havia aquele belo desfile de soldados, todos fardados., o que alimentava o desejo de ser um daqueles heróis quando crescesse.

Num certo sentido o sonho seria realizado quando servi ao exército.

Mas Hitler já se fora, Mussolini, idem, e o fantasma que rondava o mundo era o comunismo, “encarnado” na figura de Stalin, outro ditador sanguinário, paradoxalmente, produzido pela vitória dos aliados, dos quais era um deles, sobre o nazi-fascismo

Biuza
Enviado por Biuza em 02/01/2008
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