O IBGE me pergunta sobre religião

- E a sua religião?

- Ah, religião é uma coisa complicada, né? Se eu digo que a minha religião é esta ou aquela, estou necessariamente vinculando a minha consciência a um sistema de crenças já pronto e do qual não participei da formulação. Esperam que eu simplesmente manifeste minha adesão, mas eu não sei se posso aderir a conclusões que eu não cheguei por mim mesmo. O que acontece se eu refletir e chegar a uma conclusão qualquer que contradiga algum ponto do sistema de crenças? Há alguma possibilidade de o sistema rever a si mesmo e incorporar as descobertas dos fiéis? É mais provável que tratem de afastar as perguntas inoportunas e deem um jeito de fazer parecer que as contradições não são contradições de fato, pois do contrário o sistema não se manterá. O que me faz perceber que não há nenhum interesse genuíno na verdade. As religiões não estão em busca da verdade, elas proclamam que já a encontraram. E fazem um esforço grandioso para encaixar toda a realidade dentro desse conceito de verdade que não pode mudar nunca. Então qualquer corrente a que eu me filiasse significaria a cristalização do pensamento, já que eu não poderia nunca sair dos limites estreitos daquilo que foi pensado por outros antes de mim. Não quero que meu pensamento se cristalize! Quero pensar tudo que estiver ao meu alcance, com a totalidade dos recursos e das ferramentas da minha época, ponderar sobre toda crença e toda tradição, e só aceitá-los se, à luz do conhecimento atual, achar que ainda fazem sentido. Acaso pode alguém com esse pensamento fazer parte de alguma religião? E, na verdade, quem quer que seja muito cioso de sua liberdade de pensamento não pode sequer aderir a uma corrente política ou ideológica, pois elas frequentemente se confundem com as religiões. Suponhamos que eu me declare um defensor da ideologia X. Isso significa que eu deva concordar com tudo o que ideologia X diz? Mas e se houver pontos da ideologia X com os quais não concordo? Isso me faz ainda um adepto da ideologia X? Não é mais provável que queiram me expulsar da ideologia X, que me acusem de trabalhar às ocultas para a ideologia Y? Ah, dizer “esta é a minha religião”, “esta é minha ideologia”, isso compromete ao infinito, é uma prisão e um tormento, mas jamais a busca pela verdade. Porque eu não estou disposto a estar sempre ao lado da minha religião e da minha ideologia, se isso contrariar a minha consciência. E a minha consciência me diz que nenhum conjunto de crenças é tão perfeito a ponto de eu achar que posso assinar embaixo tudo o que diz respeito a ela. Mas isso tudo significa que, necessariamente, eu não tenho religião? É certo que talvez não seja nenhuma religião tradicional, mas o modo como eu vivo e enxergo a vida, o mundo, a realidade, tudo isso não é apto a constituir uma religião também? Certamente, não é uma religião com muitos fiéis. Na verdade, sou o primeiro e o último fiel dessa religião. Eu sou meu sistema de crenças, mas, ao contrário de outros, mais tradicionais, ele não é fechado. Eu sou uma síntese individual de todas as crenças que vi, gostei e incorporei, mas às quais não posso ter excessivo apego, pois pode ser que, mais tarde, eu conclua que haja outras melhores e substitua o que antes acreditava. E assim por toda a vida! Agora diga, isso é não ter religião?

- Hã... Entendo, senhor. Mas... O que eu coloco aqui no questionário?

- Pode colocar “outras”.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 25/02/2024
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