DAS DORES

Maria das Dores, ou simplesmente Das Dores, assim era conhecida e chamada no trato com as pessoas que a conheciam.

Nascida em uma pequena aldeia de pescadores, hoje conhecida como Encarnação, povoado a nivel de distrito do municipio de Salinas da Margarida, habitada na sua totalidade por descendentes de escravos que após a libertação em consequência da Lei Áurea, não tendo opções ali permaneceram e desenvolveram famílias que subexistiam do extrativismo de mariscos, moluscos, crustáceos e pescados das águas da baía de Todos os Santos. Situado a beira do mangue o tempo da aldeia era marcado pelas cheias e vazantes da maré de modo que se permitisse as mulheres a cata incessante dos mariscos de onde provinham o sustento das famílias.

Era um extrativismo basicamente de subsistência pois o resultado do trabalho não permitia a comercialização.

Com o passar do tempo, outras formas de buscar recursos foram sendo desenvolvidas, como a atividade agrícola com plantações e fabrico de farinha, açúcar extraído de cana e pescados defumados que passaram a exercer possibilidade de ganhos extras. Para tanto havia a necessidade de se transportar para centros mais desenvolvidos. Assim foi que com o passar do tempo se estabeleceu a rota marítima de Encarnação para a feira de Água de Meninos em Salvador sendo frequentemente explorada por saveiro abarrotados de mercadorias, desde sacos de farinha e açúcar, farinha de tapioca, bandejas de bejús, cachos de banana, fardos de peixes moqueados, cachos de côcos verdes e côco secos e cestos de frutas diversas como caju, manga e jaca que por lá havia em abundância. Até fumo de rolo se levava para a feira e por lá se comercializava pois já haviam compradores certos a espera. Do bem apurado, levava-se para o lugarejo o que por lá não havia, desde querosene para os fifós e candeeiros até cortes de chita para se confeccionar roupas. Sem falar que as viagens passaram a ser além de transporte de mercadorias, também de pessoas que passaram a explorar aquela rota e aos poucos foram se familiarizado com a capital baiana.

Mas voltemos a Das Dores que no passar do tempo já se pondo em ponto de transformação, começou a apresentar alterações físicas como o crescimento das mamas, e o corpo tornando-se torneado, já despertando os olhares dos homens. Era uma menina moça bonita de olhos vivos onde se podia perceber a sagacidade com que olhava cada partida de saveiro. Sem dúvida havia no seu consciente a vontade de não ter o mesmo destino de sua mãe, suas irmãs e seus antepassados que era curvar-se por horas a fio a catar mariscos, moluscos e crustáceos na lama do mangue com a maré baixa.

Certo dia Das Dores já com seus quatorze anos encasquetou na cabeça a ideia de embarcar em um saveiro para realizar a tal viagem que levava mercadoria e pessoas naquela travessia. Combinou com um conhecido que era ajudante do tio nas lides de um saveiro e o convenceu a embarcá-la de modo a permitir que fizesse a viagem sem pagar.

O mestre do saveiro fez vista grossa e em pouco tempo Das Dores estava se extasiando com a visão do mar aberto da baía, fora das águas abrigadas do manguezal .

A travessia se deu sem anormalidades e em pouco tempo atacavam na feira de Água de Meninos.

Das Dores desceu e começou a caminhar pela feira. Nunca havia visto tanta diversidade de coisas e produtos e nem tanta gente.

Depois de algum tempo parou em um bar onde serviam refeições. Estava com fome, mas não tinha dinheiro. Limitou-se a ficar olhando as pessoas se fartarem.

Percebendo a presença da moça a dona do estabelecimento preparou um prato e a chamou num canto para que ela se alimentasse.

Não tenho dinheiro. Não tenho como pagar, disse ela.

A mulher respondeu: coma e depois me ajude a lavar os pratos, as panelas e os talheres.

Assim combinado, a menina saciou a fome e em seguida pôs-se a lavar tudo na pia.

A mulher indagou o que ela fazia ali sozinha na feira e ela contou a história e que queria mudar de vida.

Resolveram que ela passaria a ajudar no bar e receberia ajuda financeira, alimentação e moradia. Em pouco tempo Das Dores estava familiarizada com tudo e todos. De vez em quando embarcava em um saveiro e ia visitar os familiares em Encarnação, retornando dias depois.

Como não gastava com nada conseguiu juntar algum dinheiro e após alguns anos a dona do bar adoeceu e resolveu deixá-la com o bar em troca do recurso que dispunha e que o restante pagasse como pudesse.

Assim, de lavadora de pratos Das Dores passou a ser a dona do bar que em pouco tempo transformou em um restaurante especializado em frutos do mar conhecido por todos e o mais importante: fazia questão de mandar vir de Encarnação toda a produção pesqueira, mariscos, crustáceos e moluscos produzido por seus familiares e amigos de forma que todos fossem beneficiados, inclusive seus clientes que se deliciava com saborosos frutos do mar vindos de Encarnação de Salinas.

*do livro HISTÓRIAS DO RECÔNCAVO (a ser lançado Deus sabe quando)

Valdir Barreto Ramos
Enviado por Valdir Barreto Ramos em 19/03/2024
Código do texto: T8023565
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