Crônicas Médicas - Responsabilidade e privilégio

Dizem que “a primeira vez a gente nunca esquece” e acredito, agora mais do que nunca, que isso seja verdade, pelo menos para o fato que ocorreu nessa manhã. Em minha cabeça, havia repassado essa cena desde meu primeiro ano na faculdade, mas nunca havia tido a oportunidade de vivenciá-la na prática. Até hoje. E, bem, não foi exatamente como eu pensara.

Era meu segundo dia de atividades depois do final das férias e, apesar da boa vontade e do desejo de fazer um bom estágio, ainda me encontrava um pouco fora de ritmo. Não a respeito da execução das atividades em si, mas sim da empolgação para voltar à rotina depois de três semanas de descanso. Eu precisava de algo para me dar uma chacoalhada e me devolver ao ritmo. Mas não precisava, necessariamente, ser tão intenso assim.

* * *

Eu havia acabado de avaliar um paciente do Centro de Terapia Intensiva e feito sua evolução no sistema. A Residente responsável pelo caso leu o que eu havia escrito, discutiu alguns detalhes comigo e, juntos, concluímos a evolução da manhã. Enquanto ela assinava as prescrições do período, ela me perguntou:

“Você sabe contra quais bactérias age cada antibiótico?”

“Tenho uma certa dificuldade nesse assunto”, fui sincero, “apesar de ter lido e relido algumas vezes sobre o tema”.

“Não tem problema”, ela respondeu. “Já, já a gente conversa um pouco sobre isso”.

Ela concluiu suas evoluções e debateu alguns assuntos com outros médicos no setor. Depois disso, sentou-se na cadeira mais próxima para explicar sobre os antibióticos.

A conversa fluiu com um certo entrave, não por falta de didática da parte dela ou por problemas na compreensão. Em vez disso, a discussão foi interrompida algumas vezes por alguns médicos ou outros profissionais solicitando a presença da Residente. Pacientemente e com interesse genuíno no assunto, eu aguardava pela conclusão.

No leito mais próximo da entrada do CTI, um paciente em estado bastante crítico e sem um diagnóstico firmado se encaminhava para o final de sua sessão de hemodiálise. A equipe de nefrologia já havia deixado a sala, enquanto outros profissionais desligavam alguns aparelhos e ajeitavam o paciente na maca. À distância, eu e a Residente observávamos a movimentação naquele box, que, pouco em pouco, começava a aumentar.

“O paciente parou”, disse calmamente uma voz atrás das cortinas. “Doutora, você vai ficar na coordenação do tempo?”

A Residente prontamente se levantou e se dirigiu ao leito, recebendo alguma ordem de sua preceptora. Foi para o fundo do CTI e eu fui junto. “Como posso ajudar?”

“Vai para a massagem”, ela me orientou. Apenas a ajudei a pegar o carrinho de parada e me encaminhei para a fila daqueles que fariam a massagem cardíaca. Na entrada do box, calcei as luvas e aguardei o sinal da médica para iniciar meu ciclo.

Por fora, sentia-se como se eu estivesse mantendo uma postura tranquila e concentrada, mas não sei dizer se essa era a real ideia que eu passava para o restante da equipe. Por dentro, tentava me recordar de todas as aulas sobre RCP que assisti e ministrei durante a faculdade. Em meio a esses pensamentos, ainda que eu soubesse que sou capacitado, minha mente me pregava peças sobre o medo de fazer algo errado. O coração acelerado, com a adrenalina subindo, e o frio na barriga me mantinham focado no momento e consciente do que acontecia ao redor.

“Trinta segundos”, informou a médica que coordenava os movimentos da equipe. Enquanto isso, cada um dos demais realizava tranquila, mas rapidamente, suas funções. “Deu o tempo. Pode parar. Checa o pulso”.

“Ainda não tem pulso, doutora”, outra médica informou. “Vitor, pode assumir a massagem”.

Subi os dois degraus da escada à beira do leito e apoiei um dos joelhos na maca para ter uma base firme. Posicionei o meu corpo sobre o do paciente, coloquei as mãos sobre o tórax desnudo do homem de quase 70 anos e comecei as compressões.

Enquanto minha mente e meus olhos processavam se meus movimentos estavam corretos, ouvi a médica informar que podiam fazer uma dose de adrenalina no paciente. Nesse meio tempo, a escada sobre a qual eu me encontrava começou a deslizar para trás. Forcei mais a perna sobre o leito na tentativa de não perder a qualidade das compressões, mas a escada continuava a escorregar para longe do leito.

Eu pensava comigo: ‘não posso cair e não posso continuar assim; a massagem desse jeito não fará o efeito necessário’. Ajeitei-me rapidamente e continuei as massagens, ainda tendo que colocar muita força nas pernas para não escorregar.

“Trinta segundos”, repetiu mais uma vez a médica. Nesse momento, só consegui pensar uma coisa: ‘caramba, nas aulas eu não me cansava tanto assim para fazer a massagem cardíaca’. Ali, no entanto, eu sentia os braços ficando cansados e o movimento perdendo sua qualidade, como todo instrutor repete nas aulas. “Deu o tempo. Pode checar o pulso”.

“Tem pulso”, respondeu aliviada uma das médicas, com a voz quase inaudível.

“Posiciona o próximo”, pediu a médica que coordenava os movimentos.

“Doutora, TEM pulso”, repetiu.

“Desculpa, havia entendido ‘SEM’. Não precisa começar um novo ciclo”.

Enquanto a equipe se desfazia e duas médicas monitorizavam o paciente mais de perto, fiquei parado próximo ao leito, relativamente aliviado, olhando para aquele senhor e registrando eternamente em minhas memórias, como fotografia, aquela cena. Não me lembro o que se passava pela minha mente, nem mesmo se algo ocupava meus pensamentos. Sei apenas que o coração ainda batia acelerado, o frio na barriga não havia passado e o clima de apreensão continuava pairando sobre mim.

Depois de um certo tempo, me peguei pensando que, com ou sem a minha presença, a equipe teria trazido o homem de volta, mas me senti bem por participar ativamente daquele momento, vendo o paciente retornar à vida. Devagar, foi caindo a ficha do que havia acontecido. Para a equipe, que era treinada e habituada àquele cenário, era apenas mais um dia no CTI. Para o paciente, era a chance de ganhar um pouco mais de tempo para lutar pela recuperação. Para mim, ainda que soubesse se tratar de uma intercorrência médica bastante frequente e para qual preciso estar preparado, era a primeira vez colocando em prática uma das aulas mais importantes do curso e mais uma oportunidade de sentir na pele a responsabilidade e o privilégio de cuidar de vidas.

Vitor do Carmo Martins
Enviado por Vitor do Carmo Martins em 04/04/2024
Código do texto: T8034873
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