O Colarzinho Branco

Os pelinhos brancos que surgiram como que instantaneamente na parte detrás do seu pescocinho obrigam-me a refletir sobre algo que eu não gostaria de pensar a respeito.

Eles falam sobre o seu tempo que corre muito -mas muito mais rápido que o meu. Talvez por isso, você esteja sentindo tanta necessidade de ficar no meu colo ou enroladinha nos meus pés! Às vezes, nem isso… basta a você estar ali, onde eu esteja: do lado da minha cama, debaixo da minha mesa de trabalho brigando pelo espaço que minhas pernas ocupam, ou se esforçando para caber entre o box e o vaso sanitário ou deitadinha no tapete úmido do banheiro enquanto tomo meu banho…

Esses pelinhos brancos, que hoje foram notados enquanto eu te escovava, me disseram coisas que eu não gostaria de ouvir -mesmo no silêncio desse fim de tarde, num tapete de grama acariciado por uma aragem morna; Talvez por isso, você já late um pouco mais em quantidade e menos potência do que era o costume, e tem uma atividade intensa enquanto dorme, com pesadelos REM horríveis, -presumo isso pelo tanto que geme, rosna e choraminga! Hoje em dia, você come bem menos do que (eu acho) devia… Prestei, então atenção noutras coisas que eu sempre tentei não enxergar e que passaram a existir: sua patinha esquerda traseira, você quase não põe mais no chão -Disfarça muito bem sua claudicação! Desde sua cirurgia que lhe tirou um útero, tantas mamas, algumas verrugas e uns caroços infernais, sua pele escureceu, ficou mais seca e parece que de alguma forma isso incomoda mais a mim do que a você mesma! Suas manias e seus tiques agravaram: a boca semi fechada, mordiscando o ar quando ouve a palavra: passear; o cocô ficou muito mais festejado com uma correria louca por todos os cômodos do pequeno apartamento que dividimos; a ração cara, importada, especial para cães idosos, riquíssima em milhares de não-sei-o-quês importantes para a manutenção da sua saúde, miseravelmente preterida por um biscoito mabel cheio de coisas inadequadas para si ou por um petisquinho de cheiro duvidoso e qualidade questionável… Ah, minha Gilda! Como esses pelinhos brancos e essas particularidades que eles me obrigaram a perceber me fizeram entrar num oceano de angústia que certamente submergirei com medo do seu tempo, que corre diferente do meu e que nos engolirá a ambos sem remorsos e sem delicadezas! Aproveita! -Um anjo soprou agora no meu ouvido! -Aproveita enquanto ainda é de tarde! Aproveita que a grama é verde! Aproveita que a água (ainda) é doce e a brisa (também -e ainda) é morna!

Marcos Aurelio Paiva
Enviado por Marcos Aurelio Paiva em 04/04/2024
Código do texto: T8034969
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.