Resto de Refrigerante

A noite caía sobre a pizzaria, e o cheiro de queijo derretido e molho de tomate impregnava o ar. Ouvia-se o barulho de talheres esbarrando nos pratos e palavras distantes e indecifráveis das pessoas ao redor.

As fatias iam desaparecendo como ilusões fugazes. Mãe e filho haviam devorado a pizza em poucos minutos. A conta chegou e eles pagaram. Levantaram-se, prontos para deixar a pizzaria e voltar à rotina de suas vidas.

Eis que o filho percebe algo. Na garrafa, que permanecia na mesa, havia sobrado um pouco de refrigerante. Pouco abaixo da metade. Era como se ela o chamasse, sussurrando: "Não me abandone, leve-me com você."

O garoto pega a garrafa e, antes que começasse a andar em direção à saída, a mãe, discretamente, lança-lhe um olhar de reprovação e questiona:

— O que é que você está fazendo? — disse a mãe entredentes com um sorriso amarelo e desviando olhares às pessoas das mesas ao redor para disfarçar.

— Estou levando o refrigerante que sobrou, ué.

— Para com isso, menino! Você não sabe que é feio?

— Ah, mas é claro! Com toda certeza eu concordo com você. É um absurdo mesmo a gente levar pra casa o refrigerante que sobrou e PELO QUAL NÓS PAGAMOS... — enfatizou o filho.

— Shhhh! Fala baixo que os outros vão escutar — interrompe a mãe sussurrando.

O garoto finge que não ouviu e continua.

— Nós pagamos por esse refrigerante e não podemos levá-lo?

— É que levar o resto pra casa é coisa de pobre, meu filho.

— E o que é que nós somos? — indagou o menino.

— Ah, você entendeu muito bem o que eu quis dizer!

— Mãe, olha só, se você parar pra pensar, são os ricos que não fazem questão de sair e deixar a garrafa aqui. O pobre é quem precisa levar porque não sabe quando vai ser a próxima vez que irá tomar refrigerante.

— Ta bom, meu filho, mas você não acha que é muita mesquinharia fazer questão de levar a garrafa? Pra quê? Não deve ter nem dois copos de refrigerante aí?

— Não acho, mãe. Não é mesquinharia. É uma questão de justiça! Acha que o correto é deixarmos a garrafa aqui para que o dono da pizzaria enriqueça às nossas custas? Nós pagamos por ela. Nada mais justo do que nós levarmos!

Após dizer essas palavras, com a garrafa em mãos, ele vira-se em direção à porta de saída e começa a caminhar para lá. A mãe, que ia logo atrás, percebe que todos os que estão nas mesas ao redor observam seu filho com com olhares atentos. Ela não podia deixar de imaginar todos as condenações que as pessoas lançavam ao menino. Cada passo dele era como um punhal entrando no peito da mãe. Tamanho era o desgosto que ele lhe dera.

Da porta pra fora, caminhavam de volta pra casa. O garoto, com seus infinitos pensamentos, questionava-se "será que sou desumano por pensar assim? Ou será que estou cercado por idiotas que não enxergam a justiça em levar o que é nosso? Por que o ser humano é tão preocupado com o que vão pensar dele? Será que isso é um costume dos brasileiros? Será que na Europa eles também saem e não levam a garrafa do refrigerante que sobrou?", até que, de repente...

— Nunca mais repita isso que você fez hoje. — diz a mãe com serenidade no semblante e em tom de correção.

Ele sabia que não era a primeira vez que lutara contra esse pensamento sem pé nem cabeça que permeava a mente de sua mãe. Sabia também que não seria a última vez se ele não pusesse um ponto final nisso.

— Será que as pessoas vão conseguir dormir hoje à noite depois de me verem sair com a garrafa nas mãos? — diz o menino rindo, olhando para a garrafa como se fosse um troféu de sua pequena rebelião.

— Cala essa boca. — responde a mãe deixando escapar um riso.

— Será que ainda sou o assunto nas mesas? — prosseguiu — Será que eles ainda se lembram de mim? Será mesmo, mãe, que sou tão importante assim a ponto de mudar a vida deles com minha atitude repugnante de hoje?

A mãe suspira. O garoto, sem entender exatamente o que estava acontecendo com ela, percebe que algo tinha mudado dentro dela. Seu semblante havia mudado também. Ela via no filho o que queria ser. Ele não buscava validação nas opiniões dos outros. Em vez disso, estava enfrentava suas próprias inseguranças e questionava o mundo ao seu redor.

— Sabe, meu filho — diz com olhos marejados —, sua atitude não foi nada repugnante, muito pelo contrário. Vejo em você um homem forte e corajoso, que não teme à sociedade e os pensamentos dela. Isso é um ensinamento que eu sempre quis te passar desde que você nasceu. Perdoe-me se eu falhei...

— Oh, mamãe, vem cá! — diz ele erguendo os braços para frente em direção a ela.

Ele a abraça, surpreso e grato por finalmente ver uma faísca de autoconfiança em sua mãe. Enquanto eles caminhavam para casa naquela noite, ela percebeu que a verdadeira justiça não estava em se encaixar nas expectativas dos outros, mas sim em ser fiel a si mesmo, mesmo que isso significasse carregar uma garrafa com o resto de refrigerante pelo caminho.