O lado debaixo da mesa

Será que em outras realidades paralelas outras de mim estão vivendo agora? Nesse marasmo da gota que cai da árvore nesse dia úmido, há outra em outro lugar olhando a mesma planta? Será a mesma planta? Será eu mesma viva, será morta?

Tudo pode ser tão bom como pode ser tão ruim. Será que meu juízo de valor é também o mesmo e a tudo entende da mesma forma? Meu prazer, minha resposta sensorial, meu pensamento responsivo a tudo que me ocorre, a esse aperto no peito em dias frios seria o mesmo em outras realidades, em dias de céu ensolarado?

Ontem me sentia perdida, foi quando lembrei de tal teoria que muito me angustia. Se tudo existe entre infinitas possibilidades de universos paralelos, seria então eu mesma irreal? Seria eu a de menor valor? Minha vida pareceu medíocre entre outras vidas. Entre tantas Rosas integrantes do Green peace, entre outras libertárias das mulheres, entre heroínas de grandes feitos... Não sei dizer, é como se eu com meu azar tivesse aqui caído de paraquedas nessa vida seca que não deixa do chão brotar sequer uma raiz. Porque de tantas coisas já começadas, essa vida é como as plantas que em casa morrem. Se começa verde e se termina galho. É como se aqui nada houvesse para brotar.

Pensei comigo, deixe disso, Rosa, se há alguma de si em outro lugar certamente há de ser menos desolada. E há mesmo, mas não posso evitar. Tenho o hábito de tirar a cor e foi assim que sempre fiquei no mesmo lugar. Enquanto outras pessoas olham o sinal verde do outro lado da rua e a atravessam, eu simplesmente lhe tiro a cor e não dou um passo sequer para qualquer lugar. Acho que é minha natureza dessa vida. Acho que essa é minha vida cansada. Ou talvez tenha me acostumado tanto a essa ideia de que outras de mim já estão fazendo algo em outros lugares que simplesmente uso uma teoria da Física como desculpas. Viver da medo. Não viver também.

Depois que pensei tudo isso e repassei todo o inacabado, acabado em outros universos, suspirei como quem pensa "é a vida" mas sabia, não é a vida. Sou eu. Essa eu. Essa eu que encolhe murchando junto às pétalas em dias sim. Essa eu que se cobre à luz do dia ao menor sinal de chuva. Eu sei do que estou falando. Falo das escolhas, das tantas escolhas que camuflo num conceito de determinismo. Ninguém me diz como essa vida vai ser mas a verdade é que tudo posso. Esse poder assusta. Deixe que as outras de mim se virem com ele... As outras Rosas, em outras existências.

Foi tarde, quando tomei ciência disso que os psicólogos chamam de auto sabotagem, embora odeie tal palavra (talvez pelo nivel de autoconsciência que isso me causa), já era tarde... Mas que merda é achar uma garrafa na geladeira e saber que foi você quem a deixou vazia sem pensar no mais tarde! Só me restava encher a maldita garrafa, limpar o desastre que fiz da minha vida esse tempo todo.

Não digo que me deu vontade de fazer nada diferente. Como disse, já há outras de mim sendo líderes, sendo astros, sendo putas e sendo uma versão elegante de terno avelã dando aula numa faculdade. Não há nada disso que me atraia ou que eu preferisse ser ou fazer. É como se no momento eu que eu soubesse que outras de mim já fazem, perdesse a graça do proibido. A graça da vida não é liberdade, é a possibilidade da conquista e se existe algo próximo do sentido da vida, pra mim deve ser a conquista. De que? Qualquer coisa.

De repente não há nada pra ser conquistado. As outras vidas tiram o tesão dessa. Quer um carro novo? Já tem em outra. Quer um apartamento no qual voltar para o trabalho com piscina de borda infinita? Outra de mim já está lá. Não foi o impulso pelas minhas outras vidas que me chamou, mas o impulso pelo desinteresse delas. Sim, pois no segundo em que me vi autossabotada entendi também que essa vida tem sua própria história e que jogar essa história no lixo, faz parte da unicidade dessa própria história.

E então, única como é, comecei a me concentrar nisso. Como se intuitivamente as coisas estivessem aqui, memórias puxadas por mim vieram como lampejos. Fosse um pouco mais metafísica nessa vida, poderia ter acreditado ter ouvido sopros de inspiração divina ou de espíritos influenciando meu pensamento. Mas não eram, pois nessa vida sou dura como uma rocha cravada no chão que nem mesmo água dura consegue furar (quem dera conseguisse). O que me ocorreu foi o cheiro forte e alérgico de insenso num corredor de sebo fazendo uma sopa dos meus pensamentos- era só uma memória da quinta-feira passada enquanto olhava uns discos de vinil no sebo do bairro. Ouvi também um grupo de garotos cantando em coro uma música no fundo do ônibus que eu pegava quando criança indo pra escola. Um deles fazia um puts puts estranho com a mão na boca, mais cuspindo que fazendo ritmo. Ouvi meu pai dizendo "volta com o troco". Eu tinha uns onze anos. Vi um saco de pastel molhado de gordura e meus dedos lustrados de óleo sem me importar com aquilo. Vi minha vida acontecendo. E chorei. Chorei como a pedra mole que não sou porque nada me atrai tanto na vida, mas nas possibilidades. E a vida me atraiu como num golpe, afinal de contas a unicidade dessas e seu caos, suas possibilidades por mim escolhidas ainda que me abstivesse de te-las escolhido, eram minhas escolhas. E minhas escolhas, sou eu.

Quem quer que tenha já sentido isso outra vez, sorrirá ao lembrar, pois é esse sorriso que nos toma nos raros momentos de passividade. Passivamente, sou o que essa vida moldou em mim e não o que outras moldaram em outras de mim. Em tantas realidades paralelas, estou vivendo essa de indecisão. De possibilidades não terminadas. De consciência das outras. Há outras de mim que ignoram minha existência. Há outras que só existem. Não é a liberdade que me chama e não é liberdade conhecer. A partir do momento que conheço, não tenho a liberdade da ignorância. E sei que há infinitas, mas eu sou eu e como outras de mim, possuímos o único algo em comum a todas as infinitas possibilidades. Todas as infinitas de mim tem a chance intrínseca de se apegarem exclusivamente a quem são e amar todas as delinquências e delícias das próprias vidas. E não seria a maior conquista da vida amá-la ao invés de tentar consertá-la ou entendê-la?

Beatriz Beraldo
Enviado por Beatriz Beraldo em 08/04/2024
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