Peido

No velório o morto, sem cerimônia, soltou um peido.

Ninguém riu, obviamente em respeito ao falecido.

Fez-se um minuto de silêncio que mais parecia um gemido mudo, estrangulado.

Mas um gaiato intrépido ousou quebrar o constrangimento, irreverente:

- Esse aí com certeza quem matou foi o urubu...

Ao ouvir isso, outro douto em deboche não se segurou e soltou:

- O coração pode até doar, mas o cu já pode jogar no lixo - tá podre.

E, como um efeito cascata, mais outro e mais outros:

-Um peido dessa categoria, num lugar abafado desse, é capaz de matar a gente tudinho aqui sufocado.

Até depois de morto o miserável faz a gente sofrer...

Já vi de tudo nessa vida, mas defunto peidar, a primeira vez...

Ele não quer morrer sozinho, não...

Eu acho que ele tá nos expulsando...

Se catinga fosse obra de arte, esse cara seria Picasso...

Em matéria de fedor, esse ganharia o Nobel da carniça.

Nem o morto respeita o próprio velório.

- esse aí já tá morto, só falta enterrar...

- ainda bem que só a alma foi pro céu, porque se ele solta um peido desse perto de Deus, nosso Senhor expulsa o herege, na hora, do paraíso.

- que céu o quê! Esse aí foi ser inspetor de qualidade no setor de tortura do inferno, isso sim...

- só sobe a catinga; o corpo pode tacar fogo...

E assim por diante, até que o sacerdote enfim chegou, tomou a palavra para finalmente começar a tortura, digo, a pregação... E o morto ficou indiferente, deitado em seu conforto de morto, aos choros e glórias.

Nesse ínterim, um míssil invisível, silencioso, explodiu no recinto. Uma verdadeira arma biológica.

E não foi o defunto, não dessa vez - não que o autor dessa nova bomba estivesse menos morto que o próprio morto.

Dessa vez, quem primeiro sentiu e se manifestou foi o vigário de Deus.

- Isso é um disparate! Castigar-vos-á Deus! Há de vingar-se de vossa vil pândega. Parvos!

- Seu padre, com todo respeito, mas de um quilo, se entendi um grama eu me dane! disse uma beata. Pode traduzir?

- Na minha terra vale um ditado: quem primeiro sentiu, do cu saiu… disse um impávido matuto.

- Parece que seu padre tá latino... concordou dona Beta com a beata.

- Néscios! Insolentes!

E o clérigo, altivo, inflado em sua batina, rubro de raiva e amarelo hepático, bateu a porta e deixou o morto sem a extrema-unção.

- Nunca vi ninguém ficar tão encabulado por causa de um mísero peido… credo! disse Fulano.

- Que falta de empatia para com o morto!

- Já vi um cara pedir licença pra ir ao banheiro peidar.

- Sério?!

- Varei!

- Era capaz de explodir, o coitado do padre.

- Deve ser porque santo não peida… respondeu Sicrano a Fulano.

- O doutor Moisés diz que prender peido faz mal… acudiu Beltrano.

- Taí! Por isso…

- A ciência tá certa, arrematou o peido do morto, mais alto que o outro, estrondoso qual um trovão, como que concordando com os companheiros de seu próprio enterro. A ciência… e foi ecoando no ambiente.

- Eita! Esse, agora, foi de matar!

- Se pegar no oio cega, gritou um cego que era amigo íntimo do finado e que ouvia, calado, o velório.

E todos que ali estavam correram para pegar um ar puro, lá fora… aliás, poluído, mas sem risco de cegueira - já de uma chuva ácida…

...não se tem certeza.

Jei vson
Enviado por Jei vson em 09/04/2024
Reeditado em 09/04/2024
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