Ausência

Um dia, perguntaram-me para quê eu nasci. Me assustei! Tal reação não foi manifestada pela ousadia do remetente, mas porque, depois dessa pergunta, de repente fiquei inerte. Eu não sabia as razões pelas quais eu tinha vindo ao mundo. A atividade de pensar me deixava vulnerável. Ao contrário de Clarice, eu não tenho filhos, tampouco escrevo. O que resta, seria dizer que amar figura-se como uma das razões para que eu nasci. Mas o conceito de amar tem sido alvo de muitos questionamentos meus. Eu não sei mais o que consiste o amor. Amar é um exercício que exige muito, e, por vezes, me esgota, me deixa vazio.

Para muitos, penso eu, naturalmente podem ser enumeradas diversas razões. Pode parecer uma atividade simples. Para mim, todavia, precisei de um tempo para tentar encontrar pelo menos um motivo que fizesse sentir-me com alguma lacuna preenchida. Que me mostrasse para quê eu vim ao mundo. Nascer, significa para muitos, um milagre; para mim, é um mistério. De repente me remeto há anos atrás, são lembranças embaçadas, mas consigo ver uma criança. Um ser inocente, uma criatura que sonha, que deseja voar. Mal sabia que, às vezes, é preciso sair para querer voltar. Talvez esta criança, se questionada com tal pergunta inusitada, fosse munida de vários motivos pelos quais ela veio ao mundo. Tento pensar em algum hobby, em alguma coisa que seja significativa, que possa caber em tal espaço, que realmente me faça sentir que trata-se do motivo pelo qual eu nasci, pelo qual eu vim ao mundo. Não o encontro. De repente, me percebo em um misto de crise dotada de vários sentimentos. Talvez eu não saiba, pior, talvez eu não tenha nenhum motivo que eu possa usar como resposta. Mas todos têm, penso eu. E embora eu evitasse ser igual a todos, eu me sentia deslocado, como uma ferramenta que não cumpre devidamente a função para a qual foi designada.

Depois de passar por um longo processo de maturação, refletindo, finalmente tento situar algo. Procuro me localizar, percebo que ando vagueando muito, resolvo olhar o ambiente. Me percebo em uma casa tomada. Noto sua estrutura, as paredes que servem de prova de delitos, os móveis que, à princípio, parecem invisíveis, supérfluos no ambiente. Mas que exercem cada qual sua função. Na estante, há alguns livros distribuídos, cada título me traz, sem dúvida, lembranças de um determinado período da minha vida. Cada um conteve uma função social em mim. Ao folheá-los, ora me surge lembranças boas, ora lembranças que desencadeiam uma série de sentimentos que outrora foram muitos presentes, que me marcaram. Ao passar por esse processo, sinto-me de algum modo, denunciado. Talvez os livros sejam a resposta. Eu me encontro neles. Eu me denuncio neles. Eu me renovo neles. Mas como minhas convicções navegam em oceanos de incertezas, talvez amanhã eu já não concorde mais. Talvez, quando tudo que existir em mim for velho, eu disponha de suporte para poder dizer com convicção para quê eu nasci. Por ora, resolvo sossegar minhas aflições, ao menos esta noite.

Josiel Araújo
Enviado por Josiel Araújo em 28/04/2024
Reeditado em 28/04/2024
Código do texto: T8051972
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