“CRISTÃOS QUE ADORAM O DIABO”: COISA DE BRASIL

Independentemente da qualidade, se um produto continua a ser vendido, é porque há quem esteja disposto a comprá-lo.

SEGUNDO os Evangelhos, ainda quando Jesus estava [fisicamente] com seus 12 apóstolos, já havia dissenções e disputas entre eles. Mas cristãos acusando cristãos de adorarem o diabo, caso atual do Brasil, pode ser considerado algo inédito.

SABEMOS que durante a longa Inquisição Católica Romana (1233-1831), centenas de milhares de cristãos foram mortos por outros cristãos. Porém, para os inquisidores, não se tratava de cristãos, mas de hereges (cristãos que haviam renegado a fé). Esse caso também não encontra correspondência como a crise da cristandade do Brasil nos dias de hoje.

DE ACORDO com a bancada evangélica e lideranças religiosas, principalmente pentecostais e neopentecostasis, que, abertamente, passaram a exigir a teocratização do Estado – substituição da Democracia por uma “Cristocracia” –, a atual guerra santa fratricida da cristandade brasileira é entre “cristãos do bem” (cidadãos obedientes a Deus, cumpridores estritos de Seus mandamentos e, sobretudo, fiéis e ardorosos defensores do Evangelho, da família cristã e de todos os altos valores do cristianismo) e “cristãos bandidólatras” (aqueles que têm corruptos de estimação, adoradores do diabo, defensores da pedofilia, da ideologia de gênero e do incesto, erotizadores de crianças e inimigos número um de Deus, da Pátria e da Família – gente pior que o próprio satã!).

E COMO a bancada e evangélica e os midiáticos líderes pentecostais e neopentecostais chegaram a essa curiosa conclusão? A lógica é simples: essas iluminadas, pudicas e retas pessoas exigem a substituição da Constituição Federal pela Bíblia, e dos valores humanistas do Estado Democrático (direitos humanos, igualdade de gênero, inclusão, separação Igreja-Estado, independência e harmonia dos Poderes, soberania popular, pluralidade religiosa...) por valores teístas cristãos (segundo, é claro, a interpretação de cristianismo definida por seus iluminados líderes) sob a alegação de que, “não importa se o Estado é laico; o que importa é que mais de 80% da população são cristãs e cristãos.

NO ENTANTO, esse reconhecimento de que eleitoras e eleitores de ambos lados (as/os que votam nos “cidadãos de bem” e as/os que votam nos “inimigos do cristianismo”) são cristãs e cristãos só dura até o resultado das eleições. A partir de então, cristãos autênticos e defensores do cristianismo são apenas a bancada evangélica, os líderes iluminados e populistas e quem participa de suas “santas convocações” para protestar contra o Estado Democrático e a favor da teocratização deste – o restante são “bandidólatras”, que “têm corruptos de estimação”, “favoráveis à pedofilia, à erotização de crianças e ao incesto”, “contrários à vida”, “cristofóbicos”, “comunistas” e “inimigos de Deus, da Família e do Cristianismo”.

COMO [pelo menos até antes do resultado das eleições], estas iluminadas e piedosas pessoas reconheciam que mais de 80% das eleitoras e eleitores são cristãs(os), não há como concluir senão que ambos lados da disputa eleitoral receberam votos de cristãos, especialmente o lado do “mal”, que foi o mais votado e, consequentemente, o eleito.

MAS, ainda segundo a tão propagada narrativa da bancada evangélica e seus gurus, se a divisão é entre “adoradores de Deus” (os que perderam a eleição) e “adoradores do diabo” (os que venceram), entre “defensores do cristianismo” e “inimigos do cristianismo”, a qual outra conclusão podemos chegar senão a de que a metade mais uns daquelas(es) mais de 80% de eleitoras(es), votaram, mesmo sendo cristãs(os) a favor do “encardido”, o “cramulhão”?!

OU SEJA, se mais de 80% do eleitorado é formado por cristãs(os), a única verdade possível nesse dilema é que qualquer que seja o candidato eleito (e consequentemente, as pautas do seu programa de governo), fora eleito por cristãs(os); e, mais óbvio ainda, se o programa de governo da chapa eleita tem como finalidade a destruição do cristianismo (e, consequentemente, todos os seus valores), isso se deve exclusivamente aos próprios cristãos (que o elegeram) que, nesse caso, segundo os iluminados da bancada evangélica e seus gurus populistas autoritários e apoiadores abertos do nazifascismo, estariam totalmente do lado de satanás, afinal o próprio Jesus sentenciou: “Quem não é por mim, é contra mim” (Mt. 12: 30).

CONCLUSÃO:

ESSE é, seguramente, o primeiro caso na história do cristianismo em que um grupo de cristãos reconhece outro grupo como cristão, porém entende [ou finge e tenta vender a ideia de que] somente o primeiro adora a Deus e defende os valores do cristianismo; o segundo, “adora o diabo, é contra Deus, a Pátria e a Família e, pior de tudo, defende os valores do comunismo, que é a mesma coisa [se não foi pior] que o satanismo”.

MAS, como costumo dizer, independentemente da qualidade, se um produto continua ser vendido, é porque há, obviamente, quem esteja disposto a comprá-lo.