Nego Rico

Tinha quase 50 anos, mas aparentava menos, tamanha era sua simpatia. Baixo, sorridente, flamenguista. Sempre o via modestamente vestido apenas de havaianas, bermuda, sem camisa, seminu. Dizia que era por causa do calor, mas eu nunca acreditei, porque, mesmo em dias de chuva, de frio, de solidão noturna, assim trajava-se. Penso que era um modo autêntico de existir, e não apenas falta de recursos monetários. Gostava de jogar dominó na praça, tomar umas cachaças, palitar os dentes, que eram poucos, porém saudáveis. Morava aqui perto. Mas agora atualmente mora apenas na minha lembrança.

Nego Rico morreu de repente, de enfarte, na solidão da noite. Não deixou dinheiros nem terras nem gado. Deixou um par de havaianas, a bermuda, os bancos das praças públicas, o jogo de dominó. Já faz, aliás, mais de um ano que Nego Rico morreu. Mas apenas agora, quando estou em férias, a notícia oficialmente tem o condão de me fazer parar e pensar nas sutilezas da vida.

Não é bom pensar, a medicina já comprovou, porém é preciso, às vezes.

Agora há pouco, eu estava em frete à tevê, e, ao ver uma reportagem sobre uma moça que estava atrasada para pegar seu voo, fui despertado do modo automático em que geralmente me encontro. A repórter queria apenas algumas palavras da moça, e recebeu como resposta apenas o "Estou atrasada. Desculpe".

Eu ri, embora a cena nada de cômico tivesse. Muito séria, inclusive, servindo de alerta ao Governo para tomar medidas drásticas para combater atrasos aéreos. Contudo, eu não ri da cena em si: ri da lembrança que ela me causou.

Conta a lenda que Nego Rico, a primeira vez em que viu um aeroporto na televisão, não sabia que aeroporto chamava aeroporto, pois, infelizmente ou felizmente, era analfabeto. Aí foi quando falou "Ah, então essa é a RODOVIÁRIA DOS AVIÕES!", e ninguém, pelos menos uma dezena de pessoas, naquela sala de espera de um posto de saúde, segurou o riso. Nego Rico ficou sem entender o motivo do riso coletivo. Morreu sem entendê-lo.

Penso que foi melhor assim. Se procurasse entender por que e de que as pessoas riem, seria muito chato, perderia muito do senso de graça que ostentou e difundiu por onde passou. Seria Menos Nego Rico, e eu provavelmente não acharia graça alguma na resposta dessa moça, cujo voo, não é novidade alguma, está sempre atrasado.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 11/05/2024
Reeditado em 11/05/2024
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