O Helicóptero

      Cheguei ontem das férias em um hotel quase digno de suas quatro estrelas. Se digo quase é porque quando entrei no quarto e fui abrir a porta envidraçada dei de cara com um sólido muro branco. E nada mais. Mas, passada a fase da aclimatação, depois de uma tentativa inútil de conseguir no hotel lotado a visão paradisíaca prometida, busquei o lado positivo: pelo menos ali eu poderia deixar estendidas as minhas roupas íntimas para secarem.Meu senso estético não permitiria que eu fizesse isto nas sacadas voltadas para a piscina, ou par a rua. Nem meu senso estético nem os zelosos gerentes. Confiando na preservação de minha privacidade, certa madrugada, vencida pela insônia, arrastei o pesado banco de madeira para a minúscula varanda e resolvi ficar por alí, lendo. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que o estreito caminho, entre o muro e a varanda, era passagem para os gatos caçadores. E ali ficamos eu e eles olhando uma para os outros, prontos para fugir ou atacar. A uma, pronta para fugir era eu, que tenho medo de gatos enquanto eles, na minha imaginação, iriam pular sobre mim. Achei que não estava certo, sou bem maior do que eles, pensei,  não vou fugir daqui apesar de ter a dupla de olhos felinos fixas em mim, tentando me hipnotizar. Um novo ano se inicia e medo não faz parte dos meus planos para o meu futuro. Encarei os bichanos e eles a mim. Vamos ver quem vence e desvia os olhos primeiro? Fiz o convite mas eles não aceitaram. Fiquei surpresa de verdade quando descobri que eles estavam com medo de mim. Abaixaram os olhos e em desabalada carreira desapareceram de minha frente. Senti que era uma grande vencedora. Afirmei em alto e bom pensamento: este ano não terei medo de nada! Enfrentarei todo e qualquer obstáculo que surgir em meu caminho. E, animada com esta predisposição, fui dormir, sabendo que novas noites insones seriam sem medo. 

             No outro dia fomos para a praia. Eu não tão cedo, que a insõnia se foi, após o episódio com os gatos. E assim, chegando  um tanto quanto tarde a praia, lá estava a minha turma, espichada em desconfortáveis cadeiras plásticas, os corpos lambuzados de óleo, os pés na areia.Que estou fazendo aqui, me perguntei, se odeio areia?O que estou fazendo nesta cidade, onde estava decidida a não mais voltar? E assim, dia após dia, o episódio se repetia. Eu saía mais tarde do hotel, atravessava a movimentada avenida que o separa da Grande Barraca, repetia a mim mesma as mesmas perguntas, mas logo me distraia, sentindo a brisa que vinha do mar e bebendo água de coco ou uma caipirosca incrementada, enquanto olhava ... o helicóptero.
 
         Pois não é que construíram um heliporto bem ao lado da Barraca! O barulho dos motores era um desconforto mas era bonito vê-lo subindo e descendo em caros vôos paronâmicos pela região. Chegou a hora, pensei, de provar minha coragem entrando neste treco-treco. Se sou capaz de vencer os gatos por que não enfrentar essa coisa voadora que, quando parado e com as hélices presas, mais parece um cachorro orelhudo. Não falei nada com ninguém, para não me comprometer, mas já estava decidido: antes do final da temporada eu daria uma volta naquilo. Mas enquanto meu lado ousado pensava na aventura, meu lado sensato refletia:quem terá sido o maluco que liberou o alvará para a instalação de um heliporto bem junto a Barraca,sobrevoando uma praia lotada de turistas descuidados?Se isto cair vai ser uma tragédia, pensei muitas vezes, quando o via subindo ou descendo. 

         Resolvemos, naquela manhã, ir para outra praia, em busca de um lugar mais tranquilo. Encontramos a tranquilidade, um mar sereno e uma Barraca quase sem nenhuma estrutura mas com uma deliciosa carne de sol com aipim, cerveja mais barata e banheiro grátis para os frequeses. Foi aqui que tudo começou, eu pensei, me colocando nos olhos de Cabral e admirando a beleza daquela terra mais de quinhentos anos depois.Algum tempo se passou até que  resolvemos pegar um táxi e voltar para casa.Eu já chamava assim o meu quarto de frente para o muro e para a passagem dos felinos esfomeados. O motorista, vencido na negociação, nos conduzia placidamente, como é próprio dos nativos. De repente, ouvimos sua voz:-o que é aquilo alí? Uma grossa coluna de fumaça subia lentamente para o céu. A esta altura nem dá para lembrar o que se pensou nem quem falou o que foi falado mas todos percebemos que era um incêndio. Vozes de dentro e de fora do taxi se alternavam ou se sobrepunham.Incêndio no hotel? Não, é do outro lado. É o helicópero que está pegando fogo! O motorista parou o carro no acostamento e fomos nos aproximando, eu com minha coragem puxando a fila, sem atentar para o perigo.Afinal tinha vencido os gatos.E sabia que o treco-treco ia cair.

            Bem, resumindo a história: o helicóptero iniciava a sua subida, quando a hélice se soltou. O piloto, percebendo, aterrisou novamente, afinal estava em altura pequena. Saiu logo do treco-treco e foi buscar os extintores (por que não estavam dentro do veículo?). Alguém chamou socorro. Os passageiros desceram com certos ferimentos. Quatro ambulâncias vieram em socorro. O Corpo de Bombeiros chegou quando o fogo já tinha transformado quase tudo em cinzas. As pessoas com seus celulares e máquinas digitais tiraram retratos de tudo. Até dos feridos. Mas, o mais interessante foram as mais variadas afirmativas, de gente garantindo que tinha visto como foi. Uma mulher disse:ele estava sobrevoando o hotel quando a hélice se soltou e passou pela piscina.Eu vi, garantia ela. Outra, afirmava com orgulho que o marido tinha acabado de descer do helicóptero quando tudo acontecera. Era certo que o piloto tinha fugido do local. Todos queriam, de uma maneira ou de outra ter participado do acontecido de forma mais direta. Eu, não falei pra ninguém, mas pensei cá comigo: Eu não disse que ia acabar caindo! Querem participação mais direta que essa?