Sonhar e seus riscos


     De certos textos nascem mãos que nos tocam de modo tão meigo, amigo, delicado...
     Ainda assim, há neles defeitos --- e muitos.
     Um texto pouco trabalhado possui pistas demais e mistérios de menos. Texto raso, fácil entendimento, parca emoção.
     Porque quanto mais elaborado, mais metafórico, metafísico e plurissignificativo ele fica.
     Compare-se a bula de um xarope aos versos de
Vandalismo
(1), de Augusto dos Anjos: qual nos faz explodir em sentimentos inexplicáveis embora compreensíveis? --- O poema, eu penso.
     Pois que a bula, pesada e medida, não contém contra-indicações, mostrando-se incapaz de nos levar à construção de qualquer outro sentido fora do seu limite denotativo, meramente informador. Passiva, não nos faz sonhar.
     Já Vandalismo, ao contrário, emerge desafiando a nossa inteligência e sensibilidade, com uma afirmação irreal:
 
            
Meu coração tem catedrais imensas. 

     Imediatamente comparamos nossos corações ao do vate, e constatamos: Sim, aqui cabem também tais catedrais. Ou: Não, ainda não cabem. Ou: cabe bem mais...
     O que fizemos nós senão adaptar a onírica, irreal assertiva do verso ao nosso puro, racional, básico intelecto, ampliando seu sentido, multiplicando-o e unindo sua alogia à nossa inelutável lógica?
     ...Houve então um micromilagre: discernimos que bula é bula (sem riscos) e poema, poema (com infinitos riscos, vale dizer, com infinitas interpretações).  Sonhamos.
     Logo: a bula só nos informa; o poema, porém, nos deleita, nos infinita. Qual valerá mais?


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(1) Eis o soneto augustiano:


Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas,
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Como os velhos Templários medievais,
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

 
Enviado por Jô do Recanto das Letras em 01/02/2008
Reeditado em 12/10/2013
Código do texto: T842755
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