Memórias de um drogado

Tratarei de empregar o nome de Fausto para tratar esse tema por razões óbvias. Suspeito da existência de certa covardia intelectual sobre o assunto. Sou dependente químico torturado durante a ditadura militar. Confundido com os comunistas lutei pela liberdade. Vivemos numa época onde a discrição é vista como trivialidade. A lei antes de se tornar um instrumento para civilidade age com o poder da covardia, portanto em São João Del Rei se inflige medo aos pecados leves, vendendo serviços aos profissionais mais caros do mercado. Quanto a mim cabe a ela, tão justa, julgar meus atos e ações longe do feitio dogmático.

Sou obrigado a refletir sobre a minha condição. Cedo ainda, aos dezoito anos, escolhi beber e fumar. Só mais tarde experimentei os efeitos da... Vale considerar em nome da verdade o prazer alcançado. Sem o quê não haveria milhões de interessados. Desfruto da minha dependência química como os pacientes de um psiquiatra, com a diferença da escolha. De fato considero o quanto todos nós vivemos em busca de narcose. Espécie de fuga desse aglomerado caótico que é viver a diferença quase nula entre o trabalho escravo e o trabalho livre. É fácil nesse estado de coisa reanimar, reerguer, polarizar a tirania. A medida da força entre o jogo resulta na perfeita esfinge do poder. O direito civil de São João Del Rei deveria excluir a palavra “poder” em nome da liberdade plena, dos direitos individuais. Considero-me então vítima e jamais réu. Vitimado como todos pela sociedade de persuasão. Vítima como todos da ingenuidade dos desejos.

O poder individualiza para massacrar e o que simboliza uma “doença” recebe o tratamento de “crime”. Para vencer é preciso uma consciência de Hércules diante de sistemas organizados. Na solidão o viciado busca o que convém ao seu mundo. Enquanto isso recai sobre ele a culpa de toda desordem e confusão. O drogado é um desertor que se furta a razão de estado, não de si mesmo. O meu árbitro ignora fumando o que se passa em mim porque possui o frasco da lei como um remédio a ser aplicado ao mundo. Soma os delitos do todo numa única ação para me condenar. Amputa de minha alma a liberdade extinta por antecipação em conceitos graças ao prazer da carência e da submissão.

Observo a vila de São João del Rei onde moram desempregados e abandonados. Os trabalhadores fracassados pela penúria dos salários. A miséria constituída pelo egoísmo das relações econômicas. É útil lembrar que as cartas, as nozes e os dados eram do povo. Quando há pouca esperança decorrente do mesmo princípio a primeira luta deveria se dar em paz contra a maldade técnica da miserabilização. Nesse meio sem esperança surgem os que vendem as drogas entre a morte, a calúnia e a insídia. Haverá sempre entre drogados um tipo de solidariedade comum sobre a terra. Um louvor as festas que perscrutam as almas e o terror posterior de um golpe igualmente mau. A humilhação das casas simples assaltadas pelos que vivem da luta. A doença inspira tanques e metralhadoras. Só o trabalho importa. A ciência como Pilatos entrega o homem a justiça. Todos os que fogem da austeridade são drogados de uma subjetividade sem cura. A tragédia forçada pelo controle do lucro em meio a tanta especulação... Nessas trevas, nessa corrupção, um homem não poderá viver em paz com seus costumes. É fácil verificar como a oferta de prazer nos desnorteia. As coisas mergulham, por assim dizer, em tal obscuridade, que se tornou necessário sinalizar tudo. As carteiras de cigarro exibem os danos da relação causa e efeito. (Existe o dependente químico e o independente químico). O sexo com seu anúncio sobre o lado pernicioso.... É incrível o quanto apenas nas repartições públicas não avistemos nós a placa sinalizadora: é proibido roubar! Placa de uso permanente e obrigatória.

Consolemo-nos ao contrário. O infantilismo proíbe o respeito às diferenças. Para não dizer que cada um a si mesmo se suporta na sociedade da concorrência esmagadora. O que há agora? Uma alma simples? Um tirano? Uma fera? Em relação a uma mesma vida o que há são as mesmas coisas, os mesmos cenários, a mesma discordância, os erros mais grosseiros de apreciação, tão desigualmente armados ou desarmados. Uma necessidade formal da distinção ingênua entre o bem e o mal. E sobre o prejuízo dos preconceitos a inata vontade de saber do que não se pode. O imprevisto encobre então uma parcela grande do interesse.