Padaria Musical

Confidencia-me o desejo de narrar-me um fato marcante de sua infância. Senta-se na cadeira de madeira de uma pizzaria aqui perto.

Paro minha caminhada. Dois amigos seguem em passo firme, marcando um encontro, aos gritos, quinze minutos depois, na ponta da rotatória. Pretendo conversar três ou quatro minutos. Congratular-lhe, caso me dê uma notícia boa sobre filhos ou netos, ou apresentar meus pêsames, se aludir à morte de um marido, de um amante ou de um namorado. Quanto mais rápido me desvencilho, mais tempo para o churrasco, dez garrafas de coca-cola, casa, banho, cama.

A senhora tira um espelhinho da bolsa. Discreta, o semblante muda ao encontro de rugas eventuais. A idade, impossível de descobrir, disfarçada pelas roupas moderninhas, calças grudadas às coxas bem torneadas. Academia de ginástica três vezes por semana, proteção contra o sol e massagem no fim de semana. Enquanto a olho, deduzo não se tratar de morte de marido ou de amante. Provavelmente um namorado a encontra para conversar, sorrir, ir ao cinema e ao teatro e, eventualmente, fazer amor durante as tardes de sábado, no intervalo entre o fechamento do comércio e as primeiras faces maquiadas da noite, transitando maquinalmente na Avenida Rui Barbosa.

Uma colônia instalara-se no país. Assim que aportaram, pais e filhos preparavam-se para a viagem ao sul quando, surpreendidos por uma razoável oferta de trabalho no interior paulista, abandonaram uma parte dos amigos, mudaram-se para Assis. Permaneceram na cidade aparentemente acolhedora, sentindo imensa falta do domingo. No domingo, na terra natal, as famílias se reuniam para festejar as dádivas da vida.

Guarda o espelho na pequena bolsa, aberta sobre as pernas. Puxa os cantos dos olhos. Bate nas bochechas. O domingo, continua seu discurso, dia muito importante na vida de todos.

Quando o sol apontava, a família tomava-se de tristeza por não compartilhar de uma reunião dominical, de sua alegria, de suas festas, de suas danças e de seus jogos. A mãe, sempre discreta, chorava silenciosamente a um canto.

Nas tentativas de estabelecer a normalidade em casa, o pai saía cedo para comprar pão, leite e manteiga numa padaria perto de onde agora é a Concha Acústica.

Pães, leite e manteiga na mesa. A esposa recompunha-se, abria o pão, passava manteiga, misturava leite ao café quando flagrou o marido, interrompendo o ensaio de flauta do filho mais velho, colocar o chapéu, sorriso estranho. Pelo vento fresco da manhã ou pelo pio de alguns pássaros, o pai não estacou aos gritos da filha.

Antes das onze horas, entrou em casa, algumas folhas de partitura tomadas emprestadas de um padre com promessa de devolução de novas na terça-feira. À esposa e aos filhos explicou a conversa com o dono da padaria que aceitara, de imediato, mas um pouco temeroso, ceder um espaço para a família tocar músicas italianas nas manhãs de domingo.

Sem disfarçar, a esposa chorou estridentemente. Apontada na rua, humilhada, achincalhada. Ao contrário das filhas, o filho mais velho se animara.

O choro da esposa, a resistência velada das filhas e a incerteza do dono da padaria não o desestimularam. Domingo seguinte, por volta das sete e meia, partituras prontas, instrumentos afinados, vozes preparadas.

Espero a continuação da história da família musical. Seu olhar passeia nas cores do fim de tarde. O vento recomeçava sua sintonia tranqüila, cortante, melancólica, modulada, persistente.

- E daí?

- Foram os dois anos mais felizes de minha vida.

Incomodado pelo frio que me causa leves dores de cabeça, pergunto o nome do conjunto. Vozes da Itália? Saudades da Terra? As cinco vozes? Os irreverentes? Tarantella?

- Padaria Musical, diz-me sorrindo nostalgicamente.

As dores de cabeça se acentuam na medida em que o início da escuridão devasta minhas angústias.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis de 7 de fevereiro de 2008.