UMA PROPOSTA DE IMÓVEL ETERNO: TENTADORA!

Eu admiro qualquer forma de ganhar dinheiro, desde que seja honestamente, claro. Essa semana eu estava em casa, relaxado, lendo o início de “o caçador de pipas” – que a minha filha tinha acabado de ler e havia me recomendado – quando a campainha tocou. Tem coisa mais chata que campainha tocar na hora em que você está lendo o preâmbulo de um livro indicado? Bem, fui atender a porta, já que ninguém – incluindo a minha filha, meu filho e a cara metade –, se dispusera a isso. Era uma jovem, muito bem vestida, em traje formal demais para o horário e o bairro em que moro, mas não posso negar que isso a tornava muito elegante e deixava o seu visual muito agradável de ver.

“- Pois não.” Falei ao vê-la, estudando-a. Tentei adivinhar de qual instituto de pesquisa ela trabalhava, se era nacional ou regional. Raciocinei rápido: ainda falta muito tempo para as próximas eleições, portanto, deve ser uma pesquisa do governo federal e, assim sendo, é nacional. Enganei-me redondamente.

“- Bom dia, senhor. O senhor dispõe de alguns minutos para que eu possa me apresentar?” A voz da moça era maviosa, suave, meiga, uma doçura!

Eu já vi que ia ser demorado. Descartei de cara a pesquisa. Mudei de opinião: era vendedora de livros, desses de auto-ajuda ou de medicina natural, cheios de milagres ou, por falar em prodígios, evangélica (nada contra). Olhei para o meu livro, tirei o dedo enfiado na página onde estava, respirei fundo, me fiz de educado e a convidei a entrar.

Sentamos-nos na sala de estar e perguntei-lhe se ela queria tomar um copo com água, por pura gentileza, pois o sol aquele horário do dia estava escaldante, e ela naqueles trajes compostos (de blazer, blusa fechada, lenço no pescoço, saia em tecido de linho fino, meias e saltos altos), podia estar precisando de um líquido para não se desidratar. Ela agradeceu e recusou. E começou a lavagem:

“- Cavalheiro, eu represento uma empresa voltada para o ramo imobiliário, no segmento do descanso eterno e estamos passando para lhe oferecer um ótimo investimento para a sua vida e para a vida dos seus. Estamos lhe ofertando um lote, localizado na parte nobre do nosso condomínio, onde o senhor terá uma vista privilegiada, com direito a um mausoléu com três gavetas, que servirá como alternativa de um imprevisto, caso ocorra uma tragédia, que Deus os livre”. É bem verdade que aqui eu resumi, mas ela se apresentou e fez uma abertura digna de qualquer grande orador.

Bem, não precisa dizer que nessa hora eu já estava cheio de folders em cima da mesinha de centro, cada um explicando as condições de pagamento, com fotos onde se via modelos de mausoléus – cada um mais bonito que o outro (confesso que eu gostei da paisagem, onde a grama era bem verdinha e o ar de tranqüilidade saia da foto e se impregnava no olhar da gente. Acho que eles botam alguma coisa no papel para dar o cheiro e a sensação de grama molhada em dia de chuva ou coisa parecida), capela onde o morador era velado, antes de ir para o seu lugar definitivo, e outro que mais me chamou a atenção: nele estavam uma família inteira, todas abraçadas, sorridentes (todos os membros da família eram pessoas tipo modelos), demonstrando uma alegria celestial, olhando diretamente para um jazigo onde se via a foto de outra pessoa, também sorridente, feliz da vida. Desculpe: feliz da morte. Quando eu ia retrucar e até ser grosseiro, ela percebeu e partiu para a ofensiva. Uma característica de um bom vendedor: atacar sem dar trégua para que o atacado não reaja as suas investidas.

“- O senhor pode pensar, num primeiro momento, que é mau gosto oferecer esse tipo de serviço! Mas, esse é o lugar onde todos nós iremos descansar um dia. E veja: a vida é curta, num instante passa, e quanto menos se espera, acontece, infelizmente”. Ela fez uma cara bastante condoída e deu um suspiro de quem acaba de perder um ente querido ou, um cliente. Nesse caso não há diferença.

Não tendo alternativa, senão a de recusar a proposta tão tentadora – não por achar mau agouro, mas por no momento não estar disposto a encarar uma poupança em que eu não pudesse resgatar os juros e nem o principal, em vida – procurei ser o mais gentil possível e até elogiar a sua desenvoltura em tratar de um assunto tão delicado para a nossa cultura.

“- Senhorita, eu agradeço a gentileza de me oferecer tão tentadora proposta de aquisição de um bem, mas devo recusar, apesar de até me sentir constrangido para isso, porém a minha família já possui um lote no campo-santo e lá já ergueu um mausoléu – não tão bonito como os que a senhorita me apresentou, em fotos ilustrativas, e nem no local paradisíaco que dá até vontade de ir o mais depressa possível –, mas, sabe de uma coisa? Depois que eu passar dessa para melhor, o que menos importa é a vista que vou ter (nunca vi dizer que finado enxergasse) e muito menos quem vai pagar para se desfazerem de mim, aliás, eu vou fazer um testamento doando meu corpo para a faculdade de medicina, pois lá estão precisando de uma carcaça interessante”.

Como a jovem não pode mais usar de artifícios para comigo, disse que aceitava a água (realmente estava muito quente), perguntou-me se eu podia indicar alguém que eu conhecia para ela visitar (claro que indiquei um velho rival meu, só para chateá-lo) e se despediu me desejando muitos anos de vida (irônico, porém bem vindo). Aceitei com gosto! E foi bater em outra porta. Confesso que não tive mais vontade de ler aquela manhã.

 

Obs. Imagem da internet
Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 10/02/2008
Reeditado em 17/03/2015
Código do texto: T853668
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