Vida real e venenos disponíveis

“Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais fortes, dos cafés mais amargos. Você pode até me jogar de um penhasco que eu vou dizer: - E daí? Eu adoro voar!”***

Hoje é um dia em que tudo parece estar errado, tudo parece estar fora do lugar. Ou melhor, nada parece existir. Um dia daqueles em que temos a sensação de vivermos num grande vazio, de viver no vácuo de uma geração que há tempos não consegue se encontrar. Parecemos bichos desesperados andando sem direção e sem sentido, fazendo de conta que tudo está bem e que estamos conquistando o mundo.

Doce ilusão essa de que o que temos é real, que vivemos num mundo de verdade. Nas manhãs que precedem esse dia, em que me sinto só e desesperançado como um verdadeiro filho de Dionísio, não sei diferenciar o que eu sonhei e o que eu vivi, e na verdade, não faz muita diferença. A sensação que o sonho me traz é melhor que o frio dos olhares que eu direciono ao mundo quando acordado. Olhares que são respondidos com medo e desconfiança.

Em qual momento será que perdemos o sentido, em que os planos pequeno-burgueses se tornam tão ordinários e banais que não inspiram nada além de uma ironia amarga, não inspiram nada mais que um rosto pétreo e uma boca fechada. Felizes os que não vêem e acreditam, porque eu mesmo vendo não consigo crer. Falta em mim a fé que sobra ao mundo, falta em nós o véu de maia que Apolo presenteou o mundo, por ser o pai bondoso que não quer que os filhos sofram, mesmo que tenha que privar o mundo desses filhos.

Como todos sabem, escrevo para exorcizar meus demônios, para curar minhas feridas, mas hoje eu não preciso de letras, preciso de lágrimas. Entretanto minha capacidade de chorar é bem menor que à vontade de escrever. Por isso escrevo, iludo mais uma vez meu coração, minha mente. Finjo me realizar nos meus textos, crio um mundo em que seja suportável viver mesmo sabendo que nada é real. Crio um mundo de tragédia, que represento no dia–a–dia, que represento através dessa ânsia de conhecer o fim do mundo, de chegar ao cabo das sensações, de estar sempre perto dos venenos lentos e das bebidas fortes. Onde permeio o abismo com esperança de que alguém me empurre e eu possa voar. E existem dias que represento tão bem que até eu mesmo acredito, eu mesmo acho que vale a pena e quase consigo me acalmar. Mas na verdade sou um ator cansado da personagem, esperando por uma proposta da vida para renovar o repertório.

*** se alguém souber o autor dessa frase, por favor me informe.