Aprendizagens

Ao psicólogo José Antônio da Silva

Cinco anos atrás participei de um simpósio em Curitiba. Enquanto esperava o ônibus de volta a Assis na rodoviária da bela capital paranaense, um matuto sentou-se ao meu lado, segurando uma pequena bagagem, revistas rurais e um chocolate. Puxava conversa, mas eu preferia me manter pouco sociável.

Para não mandá-lo aos diabos nem me irritar, decidi dar-lhe três ou quatro minutos de atenção, perguntando-lhe por que comprara, além das rurais, revistas de atores, cantores e apresentadores de televisão. A esposa as solicitara, explicou-me, guardando todo o material informativo, acautelando-se para não amassar. Acrescentou que ele e a esposa gostavam de músicas sertanejas; ela, mais dos cantores do que das músicas. Sem intenções definidas, indaguei de quem era fã, se tinha um ídolo em especial. Um cantor, um ator, um peão de boiadeiro, um bombeiro ou um detetive?

Se alguém me perguntasse algo semelhante, responderia imediatamente que possuía vários ídolos: o escritor Machado de Assis, o crítico literário Wilson Martins, o cantor Altemar Dutra, Chopin, Ravel, os que lutaram contra a ditadura militar, os estadistas, os militantes de movimentos sociais e em favor dos oprimidos, Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom José Maria Pires e alguns outros.

O alto-falante anunciou a chegada do ônibus do matuto à plataforma que ficava do outro lado. Levantando-se sorridente, segurando a bolsa com as revistas, respondeu: - Meu pai!

Perdi-me em sua resposta. Não entendia o que ele queria dizer com “meu pai”. Questionado, explicou-me:

- Você não perguntou quem era meu ídolo? Meu ídolo é meu pai.

Enquanto o homem de botas largas, trajando roupas coloridas e boné com nome de óleo de trator se perdia na multidão, procurando a plataforma anunciada, eu ria, imaginando que apenas um matuto poderia dar uma resposta daquelas. Pais ou irmãos ou amigos ou conhecidos não podem ser nossos ídolos. Ídolos são pessoas que empreendem grandes ações, constroem um imenso legado ético e moral, arrebatam aglomerados de pessoas por uma boa e justa causa. Um pai não poderia ser um ídolo.

Assisti ao telejornal e, minutos depois, quando entrava no ônibus, fui atravessado por uma visão: meu pai é um ídolo! Durante a volta a Assis não pensava em mais nada. Meu pai é um ídolo! Meu pai é meu ídolo! Não há Machado de Assis, Wilson Martins, Altemar Dutra, Chopin, Ravel, Dom Paulo, Dom Helder ou Dom José Maria Pires. Meu pai é quem mais importa, em quem me vislumbro e quem eu quero ser!

Enquanto o ônibus transcorria noturnamente, eu pensava nas lutas políticas, sociais e transcendentais travadas por meu pai, tanto na época da ditadura militar quanto nos dias de hoje e via que ali, bem próximo de mim, vivendo na mesma casa e discutindo questões acadêmicas, políticas e ideológicas paradoxais, estava um homem completo, humano, dotado de sentimentos absolutamente coletivos e altruísticos.

Refleti sobre isso por muito tempo e numa manhã, quando me preparava para ir à faculdade, abracei-o cumprimentando por seu aniversário. Abraços entre homens são como choques elétricos: os corpos tocam-se e automaticamente se afastam. Porém, naquela manhã eu o segurei um pouco mais e agradeci, lágrimas interrompendo minha fala, por ser meu pai.

Há dois pontos que me consolam. Primeiro, saber que a maioria e eu sempre estaremos errados em escolher soluções imediatas, pouco humanas e insensatas que nos levarão ao arrependimento. Segundo, ter plena convicção de que, mesmo que eu viva cem ou duzentos anos, nunca chegarei aos pés do meu pai. Ambos os casos são estímulos de tentativas diárias de aperfeiçoamento pessoal e espiritual.

Muitos sentem falta de realmente ter um Pai. Mesmo que eu não fosse filho biológico dele, viveria plenamente satisfeito por saber que fui educado, amado, protegido e incentivado por um homem que, quase totalmente incompreendido e atacado frequentemente por interesseiros e aproveitadores, abriu mão de seu bem-estar e de sua vida para salvar, estimular, habilitar e defender os outros, muitas vezes permitindo ferir a si mesmo.

Altruísmo, abnegação, dedicação e transcendentalismo são características dos grandes homens. Apenas os ídolos as possuem. Os ídolos estão em toda parte. Meu pai é um deles, meu Pai é meu Ídolo!

Cinco anos depois do encontro em Curitiba percebo a sabedoria das palavras do matuto. Ainda bem que sempre temos tempo para aprender, mudar e observar que o mais importante está bem próximo de nós.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis-SP) de 9 de agosto de 2007.

* Publicado na antologia "Elo de Palavra" (São Paulo, Ed. Scortecci, 2008).