NÓS, ANALFABETOS DIGITAIS

Esta crônica é do grande escritor Haroldo Lívio. Achei interessante e repasso a vocês, colegas do Recanto.

Já estava ciente do meu analfabetismo digital, juntamente com milhões de brasileiros, mas não dava maior importância ao fato. Ora bolas, só porque ainda não digito no computador, estou pela segunda vez na vida,

arrolado, em listra restritiva, entre os analfabetos digital! Confesso que por mera displicência de minha parte, pois não sou reacionário ao progresso. Muito pelo contrário, pois já faz tempo que minhas funcionárias utilizam computadores, no trabalho do dia-a-dia. É para a frente que se deve andar.

Recordo-me de que, na primeira vez em que estiive incluído na estatística dos analfabetos. que não sabiam ler, escrever, nem contar, permaneci na lista quase até os nove anos de idade. Regularmente, eu deveria ter sido matriculado, no primeiro ano primário, em 1946, quando completei oito anos de idade, no mês de setembro. Não existia ainda o pré-primário. Mamãe porém - querendo proteger o neném - decidiu me matricular no ano seguinte, por achar que eu estava pequeno ainda pra iniciar a caminhada da vida escolar. (Mamãezada pura e amorosa, esse adiamento, porque eu era maior do que os outros garotos de minha idade).

AvaIio, hoje, que este meu analfabetismo digital pode ser hereditário. Posso tê-lo herdado geneticamente, de meu Pai. de quem muito me orgulho de ser seu filho. Ocorre que o velho era analfabeto digital em relação à máquina de escrever, considerando que em seu tempo não havia computador. Ele vibrava com o progresso e era, sobretudo, um cidadão ilustrado que falava em público, redigia com estilo e até escreveu uma peça teatral e muitas paródias. Em seu ofício diuturno de escrivão, contudo,lavrava os termos processuais à mão, solenemente. Servia-se de papel almaço pautado, pena J, tinteiro e mata-borrão. Dessa escritura de arabescos, lavrada com caligrafia sui generis, vinha o pão nosso de cada dia, quentinho e sacramentado. Também por mera displicência, não datilografava. Quando o volume de serviço exigia, aí ele contratava um exímio datilógrafo a quem ditava o texto.

Por isto mesmo, assim que concluí o curso ginasiaI, ele me mandou para a escola de datilografia de Dona Dezuíta, onde me graduei e me habilitei para o primeiro emprego. Em seguida, entrei para o Banco do Brasil, onde fiz meu mestrado de datilografia batucando na Olivetti Linea 45 durante inesqoecíveis dezoito anos de labuta e amizade.

A qualquer hora destas, vou aprender digitação, numa escolinha qualquer, e me livrar, definitivamente, desta pecha de analfabeto digital. Aviso que quero somente operar a máquina de escrever embutida no computador. Não ambiciono maiores proezas digitais. Não pretendo ficar plantado diante da tela do monitor, horas a fio, como fazem Flávio Pinto, Wagner Gomes, Magnus Medeiros e outros internautas que conheço.

Neste instante em que datilografo, o que quero mesmo é me lembrar de meus pais, já que falei desse adorável casal a quem devo o milagre da vida. Olho para o céu azul de abril, onde devem estar, e vejo somente um grande vazio. Envolve tudo um silêncio profundo e misterioso, sem resposta para as nossas perguntas. Meninos, a gente tem mesmo que aproveitar o momento! E viver a vida! E dar graças a Deus por tudo de bom que Ele der à gente. E aos outros também.

RONALDO JOSÉ DE ALMEIDA
Enviado por RONALDO JOSÉ DE ALMEIDA em 17/02/2008
Reeditado em 17/02/2008
Código do texto: T863063
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