Finalmente casados

A Alan e Paula

Depois de nove anos de namoro, o pai da moça chamou o namorado: - Ou te casas ou acabo contigo.

Inicialmente pensou tratar-se de brincadeira, mas percebeu o olhar sério, os lábios cerrados, as faces sem graça, o bufar raivoso. Sim, olhava-o sem meias palavras. Ou casava ou ele acabava na faca, na foice, no tiro ou, se necessário, no dente. Nove anos namorando?

Em casa, narrou os fatos à mãe, que sugeriu prontamente o abandono da namorada. Lembrou do sogro: ou casava ou morria.

A avó acrescentou que casamento era bom. Teriam uma vida, uma casa, um lugar só deles. Esqueceu-se propositalmente de acrescentar as contas de energia elétrica, de água, de telefone, de supermercado, de IPTU, de transporte, de roupas, de calçados, de imprevistos.

O sogro sugeriu um apartamento na capital. Meio apavorado, comprou o jornal O Norte, leu as legendas das fotos de jogadores de futebol no caderno de polícia, riu de algumas charges, pulou a página de política, deitou os olhos nos classificados.

Apartamento na beira da praia, na periferia, no centro, num bairro sem asfalto, perto do Jardim Botânico, longe do ponto do ônibus, ao lado de uma igreja do samba, dois quarteirões do ginásio de esportes, atrás da cadeia, em frente de um bordel.

Um banco do governo oferecia financiamentos para aquisição da casa própria. Fácil: comprovante de rendimentos, RG, CPF, grau de escolaridade, certificado de reservista, título de eleitor e comprovante de voto nas últimas eleições, carteira de trabalho, prováveis bens da família, número de filhos, de amantes e de animais de estimação. Trinta anos para pagar.

O gerente do banco indicou-lhe uma feira de imóveis na manhã seguinte no Espaço Cultural. Chegou antes das oito. Optou por um bairro tranqüilo. Sonho de que algum dia aquele apartamento seria seu depois de quitar as prestações. Sogro, sogra, cunhados, mãe, avó, pai, amigos e agregados não o incomodariam. Em última instância, avisaria ao porteiro que nunca estaria em casa.

Os primeiros meses de casamento inscreveram-se no livro das lembranças, mas o sexto marcou definitivamente a memória. Quando chegou do trabalho, estranhou o sogro de bermudas e sem camisa, pés na mesinha de centro, cerveja num banquinho, derramada pelo chão. Na varanda, a sogra costurava roupas, cortando a linha com os dentes. A esposa disse que os pais ficariam ali três ou quatro...

- Dias? Perguntou, contrariado.

- Meses.

No segundo dia, o sogro trocou o sofá de lugar, tirou as cortinas, colocou a televisão perto da porta, desapareceu com o tapete da sala, deu fim nas flores.

No terceiro, a sogra comprou, para ele pagar, uma mesa de seis lugares, um micro-ondas, uma cafeteira e um aparelho elétrico de fazer lanches. Indispensáveis, assegurou a velha, tramando silenciosamente as próximas aquisições.

No quarto, sem paciência. O sogro disse-lhe para comprar um apartamento maior, procurasse algum no centro.

Preparava-se para dizer poucas e boas quando o porteiro bateu à porta, entregou algumas cartas.

Entre as correspondências, uma do primo. Dentro dela, cópia de “Anúncio classificado”, de Carlos Drummond de Andrade.

Depois lê-lo, olhou a sogra, o sogro, a esposa, a casa modificada: - Realmente, “procura-se apartamento...”

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 21 de fevereiro de 2008.