| A segunda deferência pessoal |*

* Texto extraido do livro "As crises da vida" -(Fragmentos de um aexistência)- publicação autônoma - dezembro-2007

Além da deferência de meu pai em acompanhá-lo à noite para ouvir o noticiário da guerra, ainda no Baixio, recebi outra maior. Dessa vez do próprio Gerente da fazenda.

Ele comprara um carro Ford 39, que chegou ao sítio em cima de um caminhão numa caixa de madeira de pinho de Riga. Meu pai aproveitou a madeira e mandou confeccionar uma grande “mesa de jantar” como a chamávamos.

A finalidade do automóvel era propiciar a compra de algodão em caroço, nas fazendas da região, para abastecimento da Usina. Desnecessário dizer não existir estradas, daí a necessidade de um veículo rústico, porém mais confortável do que outro de tração animal.

A deferência a que me refiro foi a de acompanhá-lo nas viagens para abrir as porteiras das estradas carroçáveis. Minha mãe não gostou da idéia porque o Gerente era “jurado” pelos “Saldanhas”, em razão de problemas amorosos com uma das moças daquela família.

Ele, bonitão, forte, rico, com mais de um metro e oitenta de altura, não foi difícil, certamente, conquistar a jovem donzela que resultou ser por ele “bulida”. Segundo o mau pressentimento de mãe, poderia haver uma emboscada e eu ficaria exposto à sanha dos seus inimigos.

Estava equivocada no seu “mau pressentimento”. Ele viria a morrer por vontade própria, pouco tempo depois de nossa volta pra morar em Caicó, e por motivo até hoje ignorado. Diziam que estava sofrendo dos nervos, mas atualmente o diagnóstico poderia ser “estado depressivo”.

De minha parte, pouco importava, se corria risco ou não.Importava sim, o mérito da função e a inveja provocada nos outros garotos do próprio sitio, os irmãos, inclusive. Fui assim, muito cedo, “calunga” de automóvel e também “flanelinha”, porque tinha o encargo de cuidar do carro e pastorá-lo enquanto o Gerente fazia seus negócios.

Numa das viagens, fomos a uma localidade chamada Boi Selado, entre as cidades de São Rafael e Florânea. Seguimos caminhos tortuosos, locais perigosos de passar, aonde jamais um veículo a motor havia trafegado. Caminhão, porque não havia estrada propriamente dita. Automóvel, porque aquele era o primeiro a existir naquelas bandas.

Havia outras opções, é certo, como ir pela estrada normal, embora também de barro, por São Rafael, ou volteando em outra direção, via Florânea. Mas, indo por dentro, conforme afirmava o Gerente, no caminho passava por fazendas, onde também fazia negócios.

Aos trancos e barrancos, literalmente falando, chegamos a Boi Selado: era um vilarejo que consistia em quatro ruas formando um quadrilátero, tendo ao fundo uma Capela e ao centro, um Mercado, mais parecendo um grande galpão aberto, sustentado por grossos pilares.

Essa imagem ficou retida na lembrança, por mais de meio século, não apenas por esse cenário descrito, mas por minha participação no contexto dos fatos.

A chegada do Ford 39 provocou o maior reboliço nos poucos habitantes, principalmente na garotada, que “espirrava” de todos os lados. Os adultos, também, pois muitos jamais tinham ido a uma cidade grande como Caicó, onde havia algumas aquelas “geringonças”, conforme chamavam. As cidades mais perto como Jucurutu e as duas acima citadas não tinham ainda o privilégio de possuir “carro de passeio”.

Cônscio de minha condição de “pastorador”, fiquei na guarda do Ford, para que os garotos do vilarejo não o tocassem. Maldade minha, hoje reconheço. Aqueles garotos estavam vendo um automóvel pela primeira vez e, assim, era justo que nele tocassem, até beijassem.

Colocado na situação deles, eu teria feito qualquer coisa para satisfazer esse desejo Até brigava com o “porqueira” do pastorador, todo pedante a exibir prestígio.

| Nada será como dantes |

No início de 2003, fui com Walma e um casal amigo, Giuseppe e Nara, fazer um passeio que denominamos, por gozação, de “Circuito das Águas”, ou seja, visitar os açudes da Paraíba e do Rio Grande do Norte, todos sangrando após vários anos de seca.

Do Açude Gargalheiras, resolvemos visitar a Barragem do Açu – Armando Ribeiro, que também sangrava. Sabia que se em Currais Novos desviasse o caminho para Florânea, poderia sair um pouco do roteiro e ir até Boi Selado. O saudosismo e a evocação da infância se encarregaram do resto.

Num certo ponto da estrada, pegamos um desvio com a indicação do nosso destino.Estrada estreita, asfaltada, aparentando nova, estava em boas condições. Walma pisou forte no acelerador e poucos quilômetros adiante, de repente, mais que de repente, a estrada acabou. Isto é, parecia haver acabado. Diminuindo um pouco, muito pouco mesmo, a velocidade,o carro projetou-se no espaço onde deveria existir uma ponte, na altura de metro e meio, e caiu no meio de um riacho com uma lâmina d’água de cerca meio metro.

O impulso da força centrífuga fez o carro, um pouco desgovernado pela falta de atrito com o solo pedregoso, atingir o outro lado, em terra firme. Somente nessa hora, tivemos consciência do perigo, e pudemos nos recuperar do susto e da tremedeira nas pernas. Giuseppe e Nara que vinham mais atrás tiveram tempo de diminuir a marcha, descer o aterro e passar lentamente por dentro do riacho.

Mas a decepção para mim estava por vir. Chegamos numa praça com a mesma conformação antiga, mas sem qualquer sinal do Mercado Público. Havia sim, uma pequena praça, limpa e arborizada, e um pequeno coreto. Tiramos algumas fotos apenas da Igreja e da “Praça”, à falta de algo mais interessante que merecesse registro.

Interpelei um cidadão, já grisalho, que assomou à porta de uma das poucas casas existentes, sobre o que eu vira no passado. Respondeu-me que o Mercado fora derrubado para construção do coreto, o que era óbvio. Mas o resto, continuava da mesma forma, exceto algumas casas e a Igreja, aparentando limpas, por receberem, de vez em quando, uma demão de tinta. Então, informei-lhe sobre um Armazém de venda de algodão, um pouco mais à frente, apontando para o local onde acreditava ficar. Ele me corrigiu: “não, o Armazém era aqui”, apontando para outro ponto mais próximo. E complementou: “era do meu pai.”

Retomando a palavra, indaguei: o senhor não era um daqueles meninos que rodearam o carro, nos idos de 1940?

“Não posso garantir, mas lembro-me que quando tinha cinco anos chegou um carro aqui, meus irmãos mais velhos e toda a molecada do lugar correram para ver a novidade. Mas eu tive medo, fiquei chorando agarrado no rabo da saia de minha mãe. Meus irmãos, depois me faziam medo dizendo que aquilo era a “besta fera” e se eu não fosse “bonzinho” ela voltava para me pegar. Essa é a recordação que tenho, nos meus setenta anos sem nunca ter saído daqui.”

Conversamos sobre assunto triviais,observadosporcuriosos, “cismados” ante a chegada de dois automóveis, com estranhos especulando sobre o lugar.

Recuando no tempo, a recordação última para mim é a saída daquele bucólico cenário, como que extraído de um Pequeno Príncipe, jamais escrito, com a molecada a nos acompanhar, sorridentes e a acenar com as mãos até a silhueta daquela estrovenga sumir na estrada empoeirada.

A cena, também perdida na poeira do tempo, transportou-me, por alguns instantes, aos oito anos, na evocação dos lindos versos de Casimiro de Abreu, pleno de saudades daquela fase que “os tempos não trazem mais”, complementados por Ataufo Alves, capaz de despojar-se de tudo pelo retorno dos seus “tempos de criança”, em resgate da felicidade que não sabia possuir.

Se aquele fora um dia histórico para Boi Selado e festivo para a criançada do lugar, para mim, poder revivê-lo, num esforço inaudito de memória, foi um misto de satisfação, mitigado, porém, pelo arrependimento de haver privado “aqueles” moleques da satisfação de um maior deleite com o espetáculo inusitado posto pela primeira vez em suas vidas.

Biuza
Enviado por Biuza em 21/02/2008
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