Vida de retalhos

Hoje acordei pensando em cortar os gastos, cortar meu cabelo, cortar a cena, cortar tudo, e no fim de tudo, claro, cortar meus pulsos. Acordei, mas não me levantei, cortei meu dia. Fiz de tudo, do livro escrito, da palavra dita, da historia repetida outra igual, mas retalhada dentro de meu brechó de farrapos baratos a venda em lugar nenhum, uma colcha de retalhos, miúdos e juntos, cores belas e diversas, rasgadas sem forma alguma, viradas a agulha e linha, juntas no fim para cobrir os sonhos de mais alguém dentro do mesmo conto. Continuo cortando, recorto, pinto, refaço, misturo, vejo, tudo outra vez, continuo a cortar, retalhar meu presente, que nunca ganhei. Mas vou assim, tesoura nas mãos e dividindo tudo aquilo que já estava desgarrado, arrancado e dissipado de mim. Reconheço agora minha figura, desfigurada, tal qual imaginava. Insatisfeito ainda, cortei a noite, desta vez com lamina afiada, faço tal rasgo que todas as estrelas caem sobre mim, enchem minha colcha já retalhada de belas estrelas fincadas em sua estrutura. Acordei da mesma historia, cansada, cortada e retalhada, agora desta vez, perfurada pelas belas estrelas que iluminavam as cores daquele trapo belo. Meu céu de estrelas agora é raso. Tão raso quanto eu desejava, cortei os céus, a noite, por não poder alcançar o estado de espírito elevado que me fizesse então que meu toque áspero e duro, pudesse se ferir no brilho impar daquelas figuras estreladas, testemunhas de toda insônia, de todo amor, de toda tristeza. Sim, rasguei meus sonhos, minha vida, minha porca e suja historia, e deixei que todo o mundo desaba-se por cima de minhas frágeis colunas, já não apreciadas e criticadas por ninguém, nem por minha pobre e critica auto crítica. Tolice, meu rosto agora tem nada mais que poucas muitas cicatrizes, cada qual com seu argumento e beleza, sem sol, sem lua, sem nada, sem tudo, sou minha própria colcha de retalhos, virados em cortes sem linha, soldei minha tristeza a minha felicidade, sem mais sentir falta de ambas. Passos, pulsos, sem jeito, desajeito meus arrumados e dou então meus passos a frente, desta vez sem linhas para tropeçar ou confundir-me. Faço de minhas cores belas e reluzentes o palco de uma nova historia, um novo conto, uma crônica, poesia, prosa, papo, conversa, grito, o que for, a porra de um monologo até um dialogo sozinho, que seja, faço, monto, reconstruo tudo aquilo que cortei, formando novas formas, novos caminhos, refaço meu animo, meus pulsos pontilhados com corte aqui, agora estão com os dizeres: cole aqui... o que desejar. Meus traçados, pontilhados, se revestem de cores incolores, esperando que todo contraste reveze o real desejo escondido dentro de meus pensamentos e então seja uma só figura, multicolorida, multirecortada, desfigurada aos olhos de todos, mas figurada e sim, real aos meus e seus olhos, tanto correr, tanto cortar, pintei e bordei, para assim, sermos eu e você, que nem sei mais quem és, ou o que sou,mas sim, somos agora, uma só, colcha de retalhos.