Livros Velhos

Livros Velhos

Livros velhos. Não no sentido de decrepitude, com páginas puídas ou mesmo em falta, empoeirados, sem capa... velhos no sentido de publicados já há um bom tempo, e não raro escritos há mais tempo ainda. Pois eu sou fruto desses livros. Não integralmente, mas boa parte de mim foi estruturada a partir e no decorrer dessas leituras.

Lembro-me de Carlos Drumond de Andrade tecer um pensamento muito valioso sobre autores de outras épocas. Ele dizia que ao ler determinado autor, de 100, 200, 300 anos atrás, tinha a nítida sensação de estar conversando com ele, aqui e agora, de igual para igual, como se estivessem na mesma sala. E de certa forma estavam. O autor, digamos de 1768, e o leitor, no caso do Drumond, em meados do século XX. Por fim o livro, espécie de cápsula do tempo, por assim dizer um DVD confeccionado em priscas eras – mas é só colocar no aparelho sensor de leitura e botar para rodar.

Não estou a par do que são, hoje, considerados os Livros da moda ou os lançamentos mais recentes, seja qual for o assunto. Quanto aos meus livros velhos, resistiram milagrosamente às incontáveis mudanças. Ainda que ano a ano ganhem novos companheiros de prateleira, e sem desconsiderar a hipótese de que a cada mudança concluída me sinto um pouco como o mago Merlin do filme “A Espada Era A Lei” - bastava um toque com a varinha de condão e eles diminuíam e entravam na valise - vejo-os agora na estante com uma ponta de satisfação, e ao invés de lombadas enxergo na verdade períodos. Foi bom estar com vcs, murmuro em voz baixa.

Em hipótese alguma posso dizer que li os clássicos, ou então que os possua sob o mesmo teto, mas ressalto de fato ter sob minha guarda a obra de Eça de Queiroz de ponta a ponta, com capa dura e tudo, e não só acho ele um clássico como o máximo, mas tenho também todos os livros do Simenon, já tive todos da Agatha, e entre uns e outros viceja quieta, pouco requisitada, uma modesta diversidade que, a cada período, me enriqueceu demasiado.

Taí um item curioso: pouco requisitados. Tivesse eu um trabalho, ou mesmo uma atividade paralela que, a cada curto(?) intervalo de tempo me obrigasse a consultá-los, e que desta consulta resultasse ou o sustento de uma família, ou a veracidade de minhas palavras, ou ambos, então sim, a importância do livro (velho) teria a sua dimensão adequada. Todavia, não é caso. E estão comigo. Parece até que desde sempre. Mesmo quando chega um novo, parece que já estava lá. Sinto-me bem ao lado deles. Na linha do tempo, e dentro do incrível parâmetro agora entitulado de “Meus Pertences”, nada teve de mim tanto zelo quanto os livros. Que, como eu, sofrem a ação daquilo que se diz por passagem do tempo.

Não concebo a vida sem livros. Não sei o que seria de mim sem esses amigos 14x21 cm (na média), que por sinal nunca me recusaram nada, aliás muito pelo contrário – a cada nova visita, uma nova surpresa. Nunca me pediram nada, a não ser um lugar na estante e um pano úmido vez por outra para retirar-lhes o pó. São quietos, talvez humildes, discretos seria o correto, não alardeiam suas virtudes batendo no peito (ou na capa) uivando com vozeirão: “Olha, se vc quiser saber alguma coisa sobre Roma antiga é comigo mesmo! Eu sou o tal, não esqueça...”.

De qualquer forma eu não esqueço. Pelo menos penso que não.

Outro dia meu filho indagou se eu tinha Guimarães Rosa. Disse tenho sim, um único, é um de capa amarela, são contos, acrescentei, e fui procurar. E enquanto procurava me lembrei do dia da compra, na livraria “Mestre Jou” da rua Augusta, dia de chuva, nunca tinha lido o Guimarães Rosa na vida, estava começando a faculdade, e aquele exemplar de capa amarela me abriu um mundo de possibilidades – da lingüística em si, ou se preferir do uso da palavra, passando pela poesia, pela cultura regional brasileira, foi de fato um novo mundo, um continente inteiro a aparição daquele autor, através daquela edição, na minha vida. Tudo isso eu pensei enquanto procurava o dito, até me lembrar que eu havia emprestado...

Não Emprestar, reza o primeiro mandamento daqueles que velam, sem motivo aparente, por seus livros. E se vc chamar de egoísmo tiro da cartola o argumento incontestável: nada disso. Ocorre que fizemos um pacto. Antes de chegar nesse planeta nos reunimos, nos confraternizamos e solenemente juramos tomarmos conta uns do outro. Os livros e o guardião, até o final dos tempos, porque entre ambos acontece a troca de determinada qualidade: a de saber, também sem motivo aparente, alguns pensamentos e alguns fatos, transmitidos através de palavra escrita. E em papel ainda por cima.

De estalo surgiram as questões: emprestei para quem? Quando? Imediatas foram as respostas: para fulano, em determinada ocasião. Não hesitei em cobrar, ainda que tenha me empenhado em disfarçar a desagradável inquietação de não estar meramente pedindo de volta um livro mas sim travando a gloriosa batalha de resgatar a ovelha desgarrada. Ficou de devolver e continuo esperando. E meu filho, em véspera de vestibular, foi beber noutras fontes que não minhas prateleiras.

Que a propósito não são tantas assim. Que diga-se de passagem dá para contar nos dedos de uma mão. E que entre as duas últimas frases confesso nunca ter sentido vontade de ter uma biblioteca e jamais invejei quem a tivesse, pelo simples motivo de que meus livros são uma espécie de DNA acerca de uma das parcelas da minha aventura na Terra. E acrescente-se a isso o tal viver na era da internet, com zilhões de revistas e jornais eletrônicos, sem falar dos e-books, dos audio-books, de declarações tipo a do chefão do NYTimes, semanas atrás, sobre o uso do papel, que o próprio NYTimes vai parar na telinha (pc ou mac), que mídia impressa já era...

Bom, no meio desse carnaval de tendências só me resta contemplar as boas leituras e rezar para que na próxima mudança Merlin apareça de novo e que meus amigos encadernados tenham um canto digno de sua missão, que é não só a de me acompanharem na próxima etapa da vida como a de dar boas vindas aos recém chegados.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 23/02/2008
Reeditado em 09/11/2013
Código do texto: T871667
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