O primeiro mico da tenra infância*

*Texto extraido do livro "As crises da vida" - (Fragmentos de uma existência)

Já próximo de voltar a morar em Caicó, paguei, talvez, o primeiro “mico”, de uma série infindável colecionada no transcorrer dos anos.

No entanto, tenho antes de fazer uma justificativa a respeito de certos atos de crianças merecedores da incompreensão dos adultos. Em regra, elas os praticam na maior inocência. O objetivo é fazer algo de bom, simplificar alguma coisa, conscientes de que estão agindo certo, da melhor maneira possível. No fundo, no fundo, querem dar uma demonstração aos adultos de que são capazes de raciocinar e produzir algo de positivo. Nada mais.

Daí a necessidade ou a sabedoria dos adultos de relevarem muitas coisas fora dos padrões convencionais praticados por crianças. Sou suspeito para essa justificativa, primeiro, por minha parcialidade em relação à criança, de um modo geral. Em segundo, porque fui o protagonista dos dois “micos” a seguir.

Meu pai, sempre que minha mãe ia parir, o que ocorria quase todos os anos, “dava um trato” numa velha cama de ferro, arena onde pelejavam na fabricação dos filhos. Ainda morando no Baixio, e na proximidade do parto, foi a Caicó e comprou uma pequena lata de tinta a óleo, de um verde forte e brilhante, para pintar a dita arena, o que fez com maestria e economia, pois sobrou um pouco no fundo da lata.

Na mesma viagem, trouxe para cada um dos três filhos homens, um par de “sandália Maria Bonita”, homenagem à companheira de Lampião, assassinado junto com ela, pela milícia Alagoana, dois anos antes, mas ainda de muito prestígio em todo o Nordeste.Essas foram as primeiras “alpercatas” que possuímos.

Confesso minha admiração pelo brilho do verde da tinta - apesar de minhas preferências pelo vermelho - e o efeito produzido na velha cama, transformando-a, no meu entender, numa das coisas mais lindas já vistas.

A satisfação pelo presente da sandália nova, de “vaqueta” de um preto brilhoso, fez-me, na inocência dos oito anos e na inteligência compatível, idealizar uma forma de torná-la mais bonita. Bastava juntar o brilho da cama, depois de restaurada, com o brilho já existente das sandálias, mudando-se apenas a cor.

Sem querer e sem saber, armara na imaginação um silogismo aristotélico. Assim, na calada da noite, quando todos dormiam, aproveitei a sobra de tinta deixada na lata e pintei o presente recebido e ainda não usado.

Dormi o sono dos justos, ou melhor dizendo, pensava haver dormido, pois logo ao acordar, experimentei a mesma ira devotada aos ímpios pelos cristãos.

Minha mãe aplicou-me o indispensável corretivo pela diabrura praticada. Para completar, ao tentar calçar-me, a tinta já seca demonstrou ser quebradiça, e ao invés do brilho sonhado e esperado, as sandálias ficaram com o rosto além de opaco, todo marcado por rachaduras.

Resultado: os dois irmãos, com suas sandálias bonitas, conforme fabricadas, faziam-me inveja, e eu com as minhas parecendo velhas, embora novas fossem, tinha de agüentar as gozações.

| O segundo mico dessa fase |

Tempos depois do primeiro, paguei meu segundo mico. Da mesma forma, com idêntico sentido de colaboração. A mesma inocência de uma criança sem maldade nos seus nove anos.

Chegara a época da Primeira Comunhão, hoje rebatizada para Primeira Eucaristia. Minha mãe ganhara de Dona Diva, esposa de Dinarte Mariz, uns ternos de “casimira inglesa”, velhos para eles, mas novíssimos para nós, em razão de nossa situação econômica.

Ela fez o desmanche e confeccionou roupas para os três filhos maiores. Minhas tias fizeram umas blusas de seda para complementar o enxoval que poucos meninos ricos poderiam possuir se comprados de primeira mão.Minhas calças embora curtas, eram de um tecido grosso, peludo e de cor azul marinho fechado.

O clima em casa era festivo. Da parte de minha mãe, porque seus filhos homens iriam receber pela primeira vez a “eucaristia”. Como devota fervorosa de Deus e de todos os Santos, aquele momento tinha um significado especial: eles participariam da grande festa religiosa trajados com esmero, talvez mais “lordes” do que outros garotos de melhores posses.

Da nossa parte, os heróis do grande evento, sentíamo-nos plenos de felicidade. Receberíamos Cristo pela primeira vez, e a partir de então nosso comportamento deveria ser pautado pelos ensinamentos aprendidos nas aulas de catecismo pontualmente assistidas.

À noite, antes de dormir, demos a última prova na roupa. Tudo bem, agora era esperar a manhã do dia seguinte para o grande ato católico.

Nasceu-me, então, a grande idéia: porque não dormir logo pronto, para evitar o trabalho de vestir-se na manhã seguinte?

Quando todos dormiam, vesti a roupa da primeira comunhão, e no dia seguinte, bem cedo, quando minha mãe foi me acordar, encontrou-me já pronto.

Pronto e “fudido”, ou quase isso. Desnecessário dizer que a roupa estava amassada e as calças de tecido peludo azul escuro cheia de pelos brancos que se soltaram do lençol de morim e da rede de fios de algodão.

Gerou-se, então, a confusão para retirar os pelos da calça e engomá-la juntamente com a blusa.

Como me havia preparado com a confissão na noite anterior, estava em “estado de graça” para receber Cristo e, assim, na simbologia da comunhão, escapei de uma boa sova.

Também, na avaliação de minha mãe, a traquinagem, apesar de merecedora de uns cascudos, configurava apenas um pecado venial, cuja gravidade não merecia uma surra nem impedia receber Cristo.

No comentário dos irmãos, desapontados com a opinião de minha mãe, “escapei fedendo”

Biuza
Enviado por Biuza em 24/02/2008
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