TANATOS

O que eu vi eu não sei se estava lá, apenas senti aquele escorrer vermelho viscoso e frio num filete d’água diluindo-se no ladrilho branco até sumir pelo ralo levando o meu olhar e o meu silencio. A vida que eu senti restringia-se as larvas brancas contorcendo-se em desespero enquanto boiavam na água fria deixando a vista apenas a cabeça escura e a fome voraz.

O que eu conhecia por viver e estar viva disponibilizava apenas um leve comentário sobre aquilo tudo. Não havia maneira de exteriorizar um sentimento ou mesmo um espanto – então me calei!

Deixei apenas o cheiro acre revelar-me a ausência purificada da vida e o rasgar em tiras que expõe a planura branca dos ossos nos dentes da serra e no fio da rugina, trazer-me a presença da morte.

Era apenas uma questão de tempo. Mas o tempo é tão fragmentado que se dissipa ao menor disparo tornando tudo, este silêncio frio e branco da morgue e o revelar de fatos e "causa mortis".

Nunca consegui entender o que existe de fato por trás daquelas portas e das fotos tiradas sem o menor pudor nem sinal de vida. Associando apenas uma estranha presença de carne e sangue e os restos de uma podridão onde as larvas fazem sua ceia, senti o quanto nos inquietamos diante da morte e do morrer.

E ainda sem argumentações e acreditando na fragilidade da matéria, questionei-me sobre a projeção do espírito e esta lamurienta escuridão que nos afasta da compreensão e do esplendor do saber.

E o que seria apenas uma tarefa fácil tornou-se uma questão crucial – a fragilidade e vulgaridade da matéria contrastando com a verdadeira existência daquilo que chamamos “alma” e que na realidade é uma imensa nebulosa de vibrações e significados que devemos aprender a ler enquanto matéria.

Dando ainda uma última olhada naquele amontoado de proteínas e aminoácidos pulverizados deixei aquela sala fria e voltei para a luz do sol.

Luciah Lopez
Enviado por Luciah Lopez em 03/03/2008
Reeditado em 17/08/2009
Código do texto: T885246
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