VIDAS PASSADAS

Manuel passava com a bíblia debaixo do braço em frente ao bar do Peritônio, onde os amigos da vida ébria passada, ainda estavam a cometer os mesmo erros que ele um dia protagonizara. Os amigos em coro, uns já alterados e outros ainda com o controle das pernas e de alguns outros movimentos o chamaram.

- Ô Mané... Mané... dá um pulinho aqui!

Manuel era bom de prosa e mesmo sendo evangélico ainda tinha bons causos para contar. Resolveu se aproximar pois quem sabe ainda conseguiria arrebanhar uma ovelha desgarrada daquelas para o rebanho de Deus. Cumprimentou a todos e após um gole de refrigerante barato; mas estava geladinho... encostou-se na mesa de sinuca e contou para os velhos companheiros um fatídico dia que gostaria até de não relembrar. Mas dizem que a desgraça alheia faz a alegria de alguns então...

"Era uma sexta feira entre muitas outras, onde a visita após o expediente no churrasquinho do Zé Carneiro era tida como certa. Não tinha cadeira suficiente para todos, muitos ficavam em pé com o espetinho de "gato" e tomando umas e outras com uma boa prosa ou fofoca mesmo. Após umas tantas pegou carona na romiseta do Astrogildo que também já estava prá lá de Bagdá e o acidente foi mais que inevitável, pela quantidade de cachaça ingerida. Apenas leves escoriações e uma torção no braço do carona.

Manuel ralava como guarda de trânsito municipal. Antes do tal acidente havia multado um senhor que levava um reboque sem que o mesmo estivesse regularizado. O senhor se identificou com médico do Hospital Último Suspiro e mesmo após mil e uma desculpas para a não apresentação do documento, não teve jeito. Manuel era o Caxias do Caxias... e tascou-lhe uma boa multa.

Uma semana depois lá estava o Mané com o braço fora do lugar e no bendito hospital.... Nunca fora de levar desaforo para casa e muito menos sair de uma boa briga, mas ir para o hospital e tomar injeção era demais prá ele. Era o seu calcanhar de aquiles.

Adiara o quanto pudera a ida, mas uma comissão formada por seus filhos e alguns vizinhos o fizeram desistir da idéia de deixar o braço do jeito que estava... tava doendo demais... Embarcaram na rural do Elias e rumaram ao pronto socorro.

Nem lembrava mais do doutor que havia multado. Pois não é que a primeira cara que viu na emergência foi a do dito cujo. O médico de pronto o reconheceu e chamou a enfermeira de lado para uma conversinha de pé de ouvido:

- Esse aí é meu!

- E não precisar anestesiar!

A enfermeira fez cara de espanto mas o "home" era o médico... sabia o que estava fazendo e preparou o paciente.

Mané contou que estava suando frio, não sabia se era da dor ou se era do medo de ser reconhecido pelo cabra que iria colocar seu braço de volta no devido lugar. O doutor se aproximou e incontinente perguntou:

- É você filho, que torceu o braço...?

- É doutor... respondeu com um sorriso amarelo. Percebera que já fora reconhecido.

E o doutor se fazendo de doido:

- E como foi o acontecido?

O Mané se explicando como podia...

- E o que é que o "fi" faz para sobreviver?

- Sou funcionário municipal!

- E desempenha que função?

A suadeira estava aumentando... a dor fora esquecida, ainda não sabia onde o médico queria chegar.

- Sou guarda municipal de trânsito... hehehehe. Um sorriso absolutamente sem graça.

O médico segurou cuidadosamente na sua mão enquanto o Cidão e o Peroba, dois enfermeiros, seguraram o Mané por trás... Que situação. Em outra circunstância já entraria em conflito com os dois brutamontes, mas naquele momento de angústia e antevendo a dor que viria não se importou muito.

Doutor Genival não se conteve e com cinismo observou:

- Essa mãozinha aqui já multou muita gente... hein?

- Não "dôtozinho"...juro... eu nunca fiz isso. As pernas estavam tremendo. A dor no braço parece que tinha se multiplicado, pelo estado de alerta naquele instante no seu subconsciente.

O puxão no braço foi inevitável... anestesiar prá quê? Mané sentiu o mundo desabar. Só não caiu por que foi auxiliado pelos seguranças.. digo.. enfermeiros do hospital. Sentiu as calças molhadas... e proibiu qualquer visita no quarto. Além da humilhação sofrida, nunca sentira dor tão grande."

Os papudinhos já estavam querendo mais um causo quando o pastor Demosténes avistou o Mané no bar e pensou que o mesmo tivera uma recaída alcoólica. Confirmado o acontecido Manuel e o pastor fizeram um pequeno sermão, até de bom tom no "aprazível ambiente", o que não teve muita repercussão pois não havia muitos neurônios disponíveis para tais confirmações de conduta. Quem sabe chegando mais cedo outro dia, antes da primeira garrafa de aguardente ser devorada, suas palavras abençoadas e seus chamados seriam ouvidos.