Sombrinhas de circo

Hoje encontrei na rua um ser provindo de Macondo. Não sei se pelo pitoresco da personalidade, porque não tive a oportunidade de conversar, ou falar, ou ouvir algo dele. Mas na aparência ele era tão pitoresco quanto qualquer Buendía de cinza na testa.

O seu rosto era fortemente carregado de traços dos indígenas da América do sul e central. Praticamente um irmão do senhor Evo Morales. Vestido totalmente contrário ao que dita a estação de fevereiro e o sol de três da tarde, horário em que nos cruzamos. Uma botina preta por fora da calça na altura da canela, uma calça de tergal caqui, uma camisa de um verde indefinível, mas tendendo para o limão. Coberto por um paletó aberto, do mesmo tecido da calça, de uma cor que meus meros olhos de macho que procura presa não puderam distinguir. Para proteger-se do sol escaldante que castigava os transeuntes, ele usava uma sombrinha multicolor, daquelas de circo em que cada parte da costura é feita por um pano de cor diferente. O sorriso que ele trazia era quase tão intenso quanto o sol e quase tão puro como o do negro que aparece na última crônica de Fernando Sabino.

Ele andava altivo, firme, com peito estufado, ombros tão largos quanto podiam ser, uma firmeza de olhar que fariam desviar qualquer outro olhar que tentasse se sustentar nele, como desviou o meu. E não desviava por ser frio, por ser inquiridor ou por ser mal. Desviava por ser tranqüilo, por ser plácido, por ser belo. Aquele ser único, caminhando calmamente no meio da urbe desvairada, humilhava por ser humilde, apressava os passos de quem o percebia por ser calmo, afastava por ser um ponto de luz no meio de uma escuridão de roupas, carros e caras.

Não me aproximei dele de vergonha. Vergonha porque teria que falar rapidamente, e por não saber o que dizer. Meu primeiro impulso foi dizer obrigado, por ter feito uma brecha de luz no meu dia, mas pensei que ele podia não entender. Quando pensei meu superego agiu e desmontou o primeiro impulso. Pensei em perguntar as horas, mas não achei coragem para tal paradoxo. E enquanto pensava ele se afastou, atravessou a rua e seguiu firme, leve, translúcido.

Olhando ele de costas, com a sombrinha leve rodando meias voltas em seu ombro, pensei que não era do sol que ele se protegia, mas do comum, do ordinário. Ele se protegia do mundo da mesmice que nós sustentamos por medo de coisas claras e livres. Pensei que ele carregava a sombrinha para provar que não sabia que aquilo não combinava com nossos dias, e assim sendo, não sabia de tudo. Podia aprender ou mudar, conforme virava sua sombrinha.

Não sei como é a vida dele, quais os seus sonhos e quais suas verdades, mas naquele momento ele mudou o rumo do meu dia, entrou de chofre na minha mente e se instalou. Não posso querer que todas as minhas crônicas tenham a pureza do seu olhar, nem que tenham a calma do seu andar, porque ainda falarei de muitas coisas, e dentre elas moram coisas muito sórdidas e desesperadas. Mas queria que todas elas tivessem a verdade que li em seus olhos, mesmo que isso seja mais uma mentira da minha esperança. Queria que todas elas carregassem uma sombrinha multicolor de circo para protegerem-se dos sóis das pessoas que pensam que sabem de tudo.