Um momento decisivo *

* - Texto extraido do livro As crises da vida - (Fragmentos de uma existência) editado em dezembro de 2007)

Na volta do sítio para a cidade (Caicó), fomos morar numa rua de calçadas altas, ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, protetora dos pretos. Nos primeiros dias, ficamos acuados dentro de casa, por recomendação materna e medo (muito mais medo do que recomendação), de outros garotos da mesma rua que desfilavam empunhando espadas de pau a nos insultar: “saiam para apanhar “beradeiros”. Este era o apelido depreciativo que os garotos da cidade chamavam os da roça.

Resistimos no início, eu e o mano Julinho um ano mais velho, em atendermos o chamado do exército inimigo e, assim, lavar a honra ultrajada. Jamais havíamos passado por uma experiência igual, de ficar “amoitado” dentro de cassa, como “mulherzinhas”, pois era assim que os garotos “frouxos” ou “afeminados” eram chamados.

Mas, convenhamos, “beradeiros” também era uma afronta. “Meninos do mato”, como também eram chamados os da roça, não sabiam sequer andar na cidade. Ou se grudavam na saia da mãe ou seguravam as mãos de algum adulto, “com medo de se perderem”, principalmente quando vinham “fazer a feira” com os pais, ou em épocas de festas.

Mas nós dois éramos diferentes. Tínhamos liberdade para pescar, caçar, tomar banho de açude, armar fojos e arapucas. Sentíamo-nos como se adultos fôssemos, pois acima de tudo, tínhamos coragem. Sim, coragem, pois na nossa cabeça não passava a idéia de levar desaforos para casa.

Além de tudo, a ansiedade em conhecer a vida da cidade, já esquecida por dois anos de ausência, mexia com nosso juízo, cada vez mais o tempo passava.

Um dia, e sempre haverá esse dia, a paciência esgotou e resolvemos aceitar a provocação, pois se não o fizéssemos iríamos viver eternamente reclusos dentro de casa. Ora, nós estávamos acostumados a uma vida de liberdade, sem falar, no meu caso que desempenhava a função de pastorador de automóvel e abridor de porteiras.A situação era, pois, insustentável.

Num certo momento, nossos pensamentos se interligaram, não necessitamos combinar qualquer estratégia, mas partimos como dois furacões para cima dos garotos em muito maior número.

A fúria do ataque os assombrou e bateram em retirada sem aceitar o confronto. Um deles, porém, não teve melhor sorte e, perseguido, valeu-se, sem sucesso, da mãe, que atônita, não entendia aquele garoto desconhecido pretendendo retirar seu filho, literalmente, de baixo de sua saia.

Nosso cartaz de valentes ficou estabelecido: tornamo-nos amigos dos ex-desafiadores e, às vezes, seus defensores contra outros garotos.

E assim, começou nossa vida de moleque, briguentos, presepeiros, mas, sobretudo, plena de liberdade, enquanto na rua, e obedientes e respeitadores dentro de casa, onde éramos tementes a Deus e aos pais, de modo especial à nossa mãe.

Dupla personalidade, diriam os psicólogos.

Biuza
Enviado por Biuza em 09/03/2008
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