Lembranças (vagas) do meu avô *

* Texto extraido do livro "As crises da vida " (Frangmentos de uma existência) editado em dezembro de 2007.

Ao tempo de criança, temos uma noção das coisas e das pessoas que não corresponde à mesma de quando adultos, sob o aspecto visual e de extensão ou tamanho. Os espaços parecem ter uma dimensão maior e as pessoas se nos apresentam muito mais velhas do que realmente são.

Já escrevi em outra oportunidade que guardava recordação de minha mãe somente de uma pessoa velha, maltratada pelo tempo. A diferença de idade entre nós era de apenas vinte e três anos, no entanto, parecia-me com quase o dobro.

Morreria aos quarenta e dois, visualmente velha.

Mas seria essa a realidade ou mera impressão de minha parte?

Atualmente uma mulher dessa idade está no esplendor da maturidade, mas conserva, quando bem cuidada, os traços da juventude. E se antes era bonita, assim continuará por muito tempo, na caminhada dos “enta”.

Ainda hoje me pergunto qual o motivo. Seriam a própria concepção do mundo que varia com o transcorrer dos anos ou as mudanças físicas ou mesmo psicológicas pelas quais passamos?

Ou por outra, seria que a dimensão dos objetos também estaria a necessitar de uma nova teoria da relatividade?

Ou então, como se acredita, o absoluto é inquestionável, mesmo?

Como não entendo de física, o assunto perde importância para mim. No entanto, posso afirmar com segurança que, no meu caso, a relatividade está presente em vários fatos, envolvendo pessoas e coisas.

Ambientes, que eram amplos quando criança, vejo-os agora como espaços diminutos, sem qualquer expressão. Pessoas altas, quase gigantes na minha percepção infantil, tornaram-se normais, até de pequeno porte quando voltei a vê-las na idade adulta.

Será que encolheram fisicamente, ou apenas foram analisadas sobre outra perspectiva, dentro de outra percepção do mundo físico?

A questão me veio à mente com a lembrança do meu avô paterno, já que não conheci o materno, falecido ainda quando minha mãe era criança.

Revejo-o na memória como um velhinho de cabelos totalmente brancos, estatura pequena e frágil, sempre a usar um terno de mescla mais para cinza do que azul e de confecção caseira. Feito por minha avó ou suas filhas, hábeis em trabalhos manuais, como costura e bordado. Ele era do alto oeste, da cidade de Martins, mas emigrara de lá, fugindo dos efeitos da grande seca de 1915, primeiro para Natal, depois para Caicó.

Segundo relato do meu pai, a viagem de Martins para Natal fora, primeiro em animal até Patu, de lá, de trem até Mossoró, na recém criada Estrada de Ferro Mossoró/Souza, dali até Areia Branca, novamente de animal, onde tomara um barco até o destino final.

Viera para Natal em busca de novos horizontes para manter a família, constituída de dez filhos, divididos em cinco casais.Um tio, de nome Gedeão, possuidor de algumas posses e prestígio correspondente, seria a salvação, como foi de fato. Conseguiu sua nomeação para a Coletoria Estadual de Caicó, na função de Guarda, o que corresponde atualmente a Auditor Fiscal. Chegando lá, suas filhas ficaram conhecidas como “As meninas do Guarda”.

A viagem para Caicó obedeceu a outro roteiro. A família saiu de barco de um cais existente no Paço da Pátria, até Macaíba, subindo o Rio Potengi, e de lá, novamente em animais até Caicó. Era esse o caminho que ligava Natal ao interior, principalmente ao Seridó.

Esse sistema de viagem para o interior do Estado na década de dez a vinte foi motivo anos após o relato do meu pai, de uma divergência de conceituação entre meu primo José Antonio Pereira Rodrigues, estudioso das “coisas” e dos fatos de nossa terra, e a autora de uma Tese de Mestrado sobre a figura de Dona Júlia Medeiros, uma das pioneiras do movimento feminista no Estado, mas que chegou à velhice em estado deplorável de demência e pobreza.

Sem querer entrar na polêmica, sobre o final de vida da ex-professora do Grupo Escolar Senador Guerra, de Caicó, acrescento uma modesta contribuição: primeiro, a importância de Dona Júlia em Caicó, como pessoa de projeção intelectual, pode ser avaliada sobre o seguinte fato: no início da década de quarenta, quando o General Fernandes Dantas,Interventor do Estado, fez uma visita a Caicó, com direito a recepção na Praça da Liberdade e presença dos alunos dos Colégios devidamente fardados, ela foi a oradora oficial, falando em nome da cidade.

Esse fato ninguém me contou. Eu estava presente como um daqueles alunos com a bandeira brasileira em punho a agitá-la sempre que se fazia loas ao Presidente Vargas.

Nos meus dez anos de idade, não fazia ligação com o mesmo personagem que cinco ou seis anos antes fora protagonista do “Golpe de Estado” que meu pai chegara a casa anunciando, conforme já fiz referência no início destas reminiscências.

A segunda contribuição que faço é sobre o motivo principal da divergência: a autora da Tese acadêmica refere-se à viagem de três moças de Caicó para estudar na Escola Normal, em Natal, tendo mulas (ou burros mulos) como montaria. Elas eram, além de Julia Medeiros, Leonor Monteiro e Olívia Pereira.

Para José Antônio, com o testemunho de sua mãe, Olívia Pereira – depois Rodrigues e ainda viva, com cento e três anos - a penosa viagem teria sido realizada a cavalo.

Intrometo-me como apaziguador e uma sentença salomônica: Ambos têm razão em relação à montaria, que as jovens caicoenses utilizaram. Viajar a cavalo constitui o gênero, do qual viajar de “burro” é a espécie. Naquele tempo, viajar de Caicó a Natal (ou vice versa) a cavalo significava viajar montado em “mulas”, porque, sendo uma raça híbrida, suportaria melhor os oito ou dez dias de duração.

Por coincidência, não foi apenas a mãe do primo e amigo José Antonio que teve essa experiência. O Tio Chico, seu pai, também a teve, conforme o relato do meu pai sobre a viagem do meu avô.A coincidência reside quanto à época das duas viagens e quanto às pessoas nelas envolvidas. O imberbe Chico Rodrigues indo para Caícó e a “moiçola” Olívia Pereira vindo para Natal. Ela não foi maior porque não se encontraram no caminho.

Mas como o mundo dá muitas voltas, depois se conheceram, casaram-se e deram vida a José Antônio e mais quatro filhos.

Biuza
Enviado por Biuza em 09/03/2008
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