Os Filhos de 64

O rico acorda tarde, já começa resmungar

O pobre acorda cedo, já começa trabalhar

Vou pedir ao meu Babalorixá

Pra fazer uma oração pra Xangô

Pra por pra trabalhar gente que nunca trabalhou

Maria Moita (Carlos Lyra)

Os filhos de 64 têm conhecidos que resistiram à ditadura militar verdadeiramente e foram exilados ou torturados. Eles mesmos passaram um tanto despercebidos. Tinham medo de o vizinho ser do DOPS e esse medo, mais as infalíveis conversas de bar com os amigos, foram suas formas de resistência. Mais tarde, votaram em Tancredo e ele morreu. Choraram na frente da Rede Globo.

Os filhos de 64 postam-se na esquina do centro da cidade, falam mal dos conhecidos, põem em dia as últimas sobre as fraquezas dos amigos e, reparando que um agente de trânsito está a multar um carro mal-estacionado, atrevem-se a destratar o agente, afinal um símbolo da repressão, como qualquer um que use farda. Caso o agente revide o insulto é destratado mais ainda, sendo posto em seu lugar de serviçal. Os filhos de 64 pagam os impostos, pagam o agente e chamam os policiais de “ratos”.

Os filhos de 64 consideram as drogas uma rebeldia, uma atitude contestatória. Quando confrontados com qualquer argumento contrário, taxam logo o oponente de “careta” e resolvem a discussão. Se o oponente ousar associar o consumo de drogas à violência urbana, é logo execrado como neo-liberal ou fascistóide. Nas suas mesas de bar, bebendo com os amigos, reclamam da falta de segurança para eles, seus filhos e netos. Reclamam da autoridade mais próxima, desde que não seja do partido político de suas preferências.

Os filhos de 64, no terreno artístico, têm uma saudade inconfessável da época da repressão política, quando se faziam músicas de protesto de verdade, e sonham com a volta do velho Chico e do Vandré, enquanto cantam “Maria Moita” no banheiro. Suspiram por Ruy Guerra, Glauber Rocha e José Celso.

Os filhos de 64 não podem, por princípio, aplicar qualquer repreensão aos filhos, que sem qualquer freio, podem ser pretensiosos e arrogantes com quem ouse contrariá-los. Os seus filhos aplicam o mesmo princípio aos seus netos, no que são constantemente reforçados por eles.

Os filhos de 64 têm uma neta gordinha, barrigudinha, saia curtinha, barriguinha de fora, que entra no restaurante na frente dos pais, escolhe a mesa, dá ordens ao garçom, reclama da comida, entedia-se com facilidade com qualquer conversa e sai pelo restaurante a encarar o restante dos clientes. Não aprova nenhum deles.

Os filhos de 64 têm netos que assistem Encouraçado Potemkin e odeiam filmes estadunidenses.

The dream is over

(John Lennon)