Imposto de Renda

- Três apartamentos, duas casas, um edifício de dezoito salas comerciais, três fazendas, cinco sítios, sete chácaras, uma oficina de restauração de quadros antigos, uma farmácia, uma loja de materiais de construção, sociedade em uma rádio e em um jornal, além de trinta vacas leiteiras compradas na Argentina, cinco bois premiados em concursos internacionais e uma igreja.

O contador ouvia a tudo em silêncio, conferindo os dados do ajudante. Março e abril, meses dos clientes do imposto de renda. Os clientes demoravam para levar comprovantes, recibos, notas fiscais, escrituras etc.

Naquele instante, nervosismo quebrado pela informação de uma igreja constar dos bens de um cliente. Sorriu. Mostrou os dentes brancos, limpos sem auxílio de fio dental. O assistente, constrangido, sorriu também. Não achava graça, mas precisava do emprego.

Casas, apartamentos, farmácias, material de construção, rádio, jornal e terras com bois e vacas tudo bem. Uma igreja? Riu tanto que lhe saíam lágrimas.

- Vamos prosseguir, ordenou o contador. Depois dos bois, acabou. Não tem mais nenhum bem?

- Uma igreja, acrescentou o assistente.

- Uma igreja? Levantou-se de sua cadeira, deu a volta na mesa.

O contador abriu os papéis, revirou de ponta cabeça, ordenou-os e perguntou ao assistente quem fizera aquela lista. Em três minutos, Silvia, uma secretária deliciosa do médio escritório de contabilidade, entrou na sala. Saia pequena, mal cobria as partes pudicas.

O contador perdeu fôlego e tempo recompondo o discurso, bronca de ela ter colocado uma igreja entre os bens do cliente, a mandaria embora. Onde se viu? Uma igreja? Uma igreja não era uma casa de comércio!

Que maluquice aquela de igreja? O cliente mandara, disse, cruzando as pernas propositalmente a fim de desconcentrá-lo.

Consultou o cadastro do cliente, anotou o número do telefone:

- Alô. Alô. Alô!

- Não precisa gritar. Não há ninguém surdo aqui. Não pode esperar um minuto?

Desculpa-se. Pede para falar com o cliente. A esposa dá outro número telefônico. Estará lá em vinte e cinco minutos. Acabara de sair. Trânsito ruim, afirma a esposa.

Liga para o novo número. Uma moça de voz sensual, mistura de locutora de rádio FM e de rodoviária, quer saber quem é e se não pode adiantar o assunto. Contador, contador profissional, acrescenta. Precisa falar com o chefe dela, cliente dele, para resolver um pequeno problema burocrático.

Do outro lado da linha:

- E aí, rapaz? Algum problema?

- Bom dia, doutor. O senhor me desculpe, mas...

- Fui pego pelo Imposto de Renda?

- Não, doutor. O contador amansou a voz. Como falaria de um absurdo daquele? O cliente trocaria de escritório.

Do outro lado da linha, o cliente:

- E daí? Se eu não fui pego pelo Imposto de Renda, por que me telefonas?

- Minha assistente me ditava os bens do senhor e, no último item, consta uma igreja. Eu achei um absurdo, mas ela me disse que o senhor incluíra a igreja. Liguei apenas para verificar essa maluquice e, confirmada, despedir minha assistente. Não posso ficar com uma louca aqui, arriscando a vida dos meus clientes. Porque, o senhor sabe, se a Receita Federal pega, é uma dor de cabeça danada.

- Não despeça sua assistente. Eu pedi para ela acrescentar a igreja como meu bem.

Silêncio. O cliente:

- Mais alguma dúvida?

- Doutor, o senhor não pode declarar uma igreja. Uma igreja não é um comércio, uma indústria ou uma fazenda. Compra de igreja não pode ser deduzida no Imposto de renda.

- Então, o dinheiro que eu ganhar na igreja não precisa ser declarado no Imposto de Renda?

O dinheiro arrecadado na igreja não poderia ser deduzido nem no Imposto de Renda nem em imposto nenhum. Dos templos religiosos não poderiam ser cobrados tributos.

No ano seguinte, o contador estremeceu de preocupação ao notar que o cliente não mais possuía apartamentos, residências, salas comerciais, fazendas, sítios, chácaras, farmácia, loja de construção, rádio, jornal, vaca ou boi. Ligou para ele. Realmente não possuía nenhum bem em seu nome ou no da esposa ou no dos filhos ou no de algum dependente? A Receita Federal poderia...

- Meu camarada, falou o cliente, vendi tudo, apliquei e agora estou rico.

O contador quis saber qual a mágica para enriquecer e fugir da Receita Federal ao mesmo tempo.

- Sabe a Igreja do Samba na Vila Xavier, na Maria Isabel, no Jardim Europa, na Cohab, antes do Distrito Industrial, depois da UNESP, vizinha à FEMA, perto da indústria de refrigerante e em frente do DER?

O contador escutava sem interromper.

- E aquelas em Echaporã, Iepê, Ourinhos, Salto Grande, Ibirarema, Palmital, Platina, Cândido Mota, Rancharia, Araçatuba, São José do Rio Preto, Marília e Bauru?

- Sim, respondeu o contador, ainda sem juntar as peças.

- São todas minhas. Demorei trinta anos para juntar tudo o que, até o ano passado, você sabia de cor. Vendi tudo, investi em igreja e, em um ano, juntei o triplo do patrimônio. Com um detalhe: não pago um centavo de Imposto de Renda, de IPVA, de IPTU, de ICMS, de ITR, de IOF, de direitos trabalhistas...

O cliente continuava seu discurso, mas o contador nada ouvia. Tão experiente, nunca pensara em tal hipótese. Caiu enfartado no chão: quanto dinheiro não perdera ele mesmo, contador, no Imposto de Renda? Do telefone, as palavras levemente cortadas do cliente, festejando as peripécias para enganar e se livrar da Receita Federal.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis - SP) de 20 de março de 2008.