Vidas na Estante

"Mudar de endereço não é somente o deslocamento do corpo, mas também mudança de atitudes, de pensamento. É preciso mudar a alma."

Não ando desdenhando a cidade que tanto amo, mas venho a Mimoso do Sul muito pouco agora. Menos do que gostaria. E, por conta disso, minhas bagunças aumentaram. Hoje é sábado, queria sair para me distrair, mas minha consciência - e mamãe - me obrigam a limpar a estante do quarto. Ambas repetem pela milésima vez que “isso não é quarto de uma moça!”. Eu cresci tanto assim? Quando pequena, eu podia fazer a bagunça que quisesse, e todos achavam graça. Agora é feio. Mas me acostumei na bagunça, e minha vida também se tornou uma. Serei uma anarquista?

Por isso, abomino crescer!

Mas olho os meus ursos, o jogo Banco Imobiliário, os discos infantis, o empoeirado vídeo game Atari e não sinto mais vontade de brincar com eles. Meu brinquedo agora é um notebook, onde brinco de fazer sopinha de letras, que nem sempre dão para engolir.

Sento na cama, desolada, e vejo o tamanho da minha tarefa. Minha estante está atulhada.

Estou ali, imortalizada em papéis, fotos e rabiscos. Parece uma exposição do que fui. “Venham todos, vejam: esta é a Renata Batista Mofati! A Renatinha, a Tatá, a Renata Mofada, a Zinha, a Rê, a Play, a Cabelo de Fogo...” Eu olho e já não me reconheço mais ali. Agora sou apenas Renata Mofatti, e pronto.

Sou outra? Uma outra pessoa habita em mim? Eu cresci e não percebi?

Não sei se quero limpar minha estante mimosense, mexer nessa casa - literalmente - de abelhas, com tantas fitas, cds, autógrafos e fotos do Kid Abelha, rever os pedaços dolorosos da minha vida, os bilhetes malcriados dos amigos, as provas de matemática com notas péssimas, minhas letras tremidas e redondas. Essa estante tem cheiro de mofo. São 25 anos colecionando pedacinhos de uma vida que nunca foi uma só. Como sempre fiz, jogo um pouco de perfume sobre ela, na esperança de que as coisas boas que ela guarda voltem à minha lembrança. Mas apenas disfarço a estante, tornando-a um baú velho e fechado, encarcerando nele pedaços quase esquecidos de minha vida.

Tenho mudado muito, ultimamente. Comecei pelos sobrenomes. As fotos antigas e os papéis velhos não perderam o sentido, mas a minha nova vida é em Cachoeiro. Lá tenho outra estante, que também ando atulhando com novas fotos, novos livros, novas letras, novos rabiscos. Talvez, um dia, eu me sente em frente a ela e me sinta perdida e esquecida. Será uma pena.

Aqui há livros velhos, sujos, empoeirados pelo vento e pelo tempo, com capítulos rasgados; lá, novos livros que leio todo dia; aqui, cartas já abertas; lá, muita coisa por escrever; aqui, poemas velhos e sem rimas; lá, crônicas de minha vida; nesses livros, só poeira; lá, vida pulsante, sete meses juntando caquinhos. Aqui colocaram as coisas em minha estante; lá, sou eu que escolho o quê e como colocar.

Qual dessas duas estantes sou eu? Qual delas quero ser? Acho que nenhuma das duas ou um pouco de cada uma. Ora, empoeirando-me no passado, ora, permitindo-me folhear os capítulos do presente. Afinal, a minha vida na estante pode passar “num instante” e em nenhuma delas quero ficar trancafiada.

Ainda não é o momento de ordená-la e nem estou pronta para “engavetar” com tanta frieza as minhas lembranças. Passo apenas um paninho úmido por fora e varro os cupins que presenciaram, por tanto tempo, a minha vida ao redor de papéis.

Decidi por pensar somente na minha outra estante, aquela lá de Cachoeiro, que está sempre limpinha, com verdadeiras poesias e cheiro de coisa nova.

Renata Mofati
Enviado por Renata Mofati em 24/03/2008
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