A marca de uma personalidade. *

* Texto extraído do livro "Ocaso e renascer de uma vida", publicado em dezembro de 2006

Na seca de 1942, já de volta do Baixio de Baixo e morando em Caicó, Dinarte Mariz contratou com a então IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas), sucedida pelo atual DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca), um trecho da construção da estrada entre Caicó e Jardim do Seridó e o entregou a meu pai para administrá-lo.

A fome grassava naquela região; os trabalhadores acorriam ao local a procura de trabalho, mas a IFOCS não autorizava o inicio do serviço. Já havia notícias de morte de animais, como cabras, ovelhas e gado, nas fazendas vizinhas, tomadas no muque pelos operários famintos.

Meu pai havia instalado um Barracão, de propriedade de Dinarte Mariz, repleto de mantimentos para suprimento dos operários quando estivessem trabalhando.

Certo dia, levantei-me cedinho para urinar do lado de fora e me deparei com um espetáculo estranho para mim e sem noção de sua gravidade: um ajuntamento de centenas de pessoas no terreiro do Barracão, todos demonstrando irritação com palavras que não entendia direito, nos meus nove anos de idade.

Acordei meu pai, contei-lhe o que vira e ele saiu para dialogar com a turba, sem camisa, embora fizesse frio naquele amanhecer seco de verão brabo. (Esta cena seria repetida dez anos após, em outro local, conforme relato em outra parte)

A desculpa de que o “serviço não pegava” - termo que os trabalhadores entendiam bem - porque não tinha autorização da IFOCS, não os satisfazia. Queriam trabalhar para ganhar o suficiente que lhes garantisse matar a fome e a sede, mandar dinheiro para a família, pois não agüentavam mais a miséria em que viviam.

Sem outra solução, meu pai os tranqüilizou, pediu-lhes que se dispersassem, fossem para o campo (local onde o serviço seria executado), pois iria providenciar um vale de cinco mil réis (dinheiro da época), para fazerem compras no Barracão.Além disso, providenciaria água e determinaria a distribuição de carros de mão (carroças manuais), pás, enxadas e picaretas para que trabalhassem de imediato.

A turba se dispersou, as providências foram tomadas por um empregado do Barracão, Paulo de Luizinho, e a paz reinou entre todos.

Um episódio, no entanto, marcaria a diferença entre duas personalidades: a do meu pai, com a determinação de enfrentar a turba, com ela parlamentar e, pacificamente, encontrar a solução para um grande problema, e a um seu auxiliar, embora irmão do proprietário do Barracão ameaçado de invasão, que durante toda a cena, simulou dormir enrolado no lençol, enquanto os empregados subalternos permaneceram de sobreaviso, aguardando o desenrolar dos acontecimentos, prontos para agir, caso necessário, e temerosos da própria vida.

A partir dessa covarde atitude, não houve mais clima para permanecer no Barracão, mesmo em posição secundária de mando, sendo chamado de volta para o escritório da firma em Caicó, onde ficou “encangando grilo”, pois nada sabia fazer. Era apenas irmão do dono.

Relatadas a Dinarte Mariz as razões de haver determinado, por conta própria, o início do serviço, ele acatou a decisão e a transmitiu à Inspetoria Federal de Obras Contra a Seca IFOCS, que agiu de igual modo.

Do fato, se tira a ilação de que inexistia motivo para o retardamento daquilo que seria, como foi, o lenitivo para milhares de sertanejos sobreviverem das intempéries provocadas pelo fenômeno que dava nome àquele órgão.

Biuza
Enviado por Biuza em 26/03/2008
Código do texto: T916792