Histórias de Chuva: CORAÇÃO DA MUCURA

“Coração da mucura”

Férias em São Luiz é tudo que um menino deseja. Praia, sol, mar, comida boa, família carinhosa, água quente de dia e de noite, e namoradas. Uma de cada vez para uns ou todas de montão para outros. E para mim aquela tão terna e querida, que sinceramente, fora a escolhida.

Na praia do Olho D’Água a maré de sete metros deixa um rastro duro de areia molhada. Lá no final, a água. É escura, revolvida. E no chão os sinais quase imperceptíveis que a estrela-do-mar deixa. Consigo cavar com o pé uma pequena covinha e desenterrar uma delas. Covinha igual as que ela tem quando sorri. Covinha igual vejo também nas costas, lá embaixo. Que pego delicadamente e mexo. Se fosse agora meu filho diria que é um “joystick”. Para mim, “old fashion”; é saboneteira.

Corremos chapinhando água para todos os lados. Os tralhotos, peixes de quatro-olhos, saem em pequenos saltos na diminuta marola que a maré vazia tem. É baixa-mar. E é segunda-feira. E o dia amanheceu nublado. Só um goiano como eu, vai para praia. E ela. Ela é do mar, ela é a minha mão, ela é do Maranhão.

Inocência e amor puro são como brisa marítima. Leves. Serenos. E de uma alegria inconteste. Como gostamos de brincar de pique-pega. Ela sai em alta velocidade pelas pocinhas e antes mesmo de eu alcançar suas pernas de índia, ela cai. Caio junto. Mas não abraço romanticamente como a maioria deve estar imaginando. Caímos na risada. Gargalhamos.

- E agora o que vamos fazer?

- Depois das pedras tem um rio e uma duna, bora lá?

As rochas cobertas de cracas só aparecem neste momento. Dá vontade de ir saltando de uma pra outra.

- Não pise, não. Corta o pé.

- Pode deixar. Eu já sei. Olha ali, o que é?

- Moréia amarela. Não bole não, que ela morde.

Ficamos encantados com o enorme peixe encantoado numa pedra, só com a sua cara de cavalo de fora. E o corpo de cobra. Seus movimentos perfeitos, serpenteantes, inspiraram-na a dançar. E aí além de encantado, fiquei maravilhado. Foi curto o show. Ela saiu em desabalada carreira direto para a duna.

Não obstante ser a duna uma cópia do “Morro do Careca” lá de Natal, ela ascendeu como se nada fosse. Apesar do meu peito de nadador, cheguei esbaforido. Ela nem parou. Corria e saltava. Bem distante. Era delícia, isso. E no fim mergulhávamos no rio. Passamos um bom tempo nisso. Que felicidade.

- Você está vermelho como um camarão.

- Então sou um camarão empanado. Disse eu rolando molhado na areia.

- Eu adoro camarão. E me mordeu.

- Ai, doeu!

Pulei em cima dela meio com raiva e meio de brincadeira. Descemos rolando até o final da duna, agarradinhos. Pela primeira vez eu vi a respiração dela se alterar. Eu não sabia direito o porquê, mas era uma coisa forte.

Paramos e nos entreolhamos demoradamente. Eu não sabia se fechava os olhos e a beijava, ou se ficava mirando aquela menina tão linda. Ela resolveu o problema. Beijou-me. Um beijo diferente, mordiscado. Faminto.

Cabrum!

Começou a chover. Ficamos ali grudados um no outro. Sem saber onde por as mãos ou as pernas. Ou qualquer outra coisa mais. Eu era muuito desajeitado. E ela sentiu frio e eu a apertei tenazmente. E então aconteceu algo.

- Olhe lá!

- Já vi, é uma ratazana.

- Não bobinho. É uma mucura.

Mucura é o bicho mais feio que já vi na vida. Uma mistura de gambá com rato gigante. Negra, maior do que um gato grande. O focinho comprido, os olhos injetados de sangue. Dentes para fora e a traseira mais alta do que a frente. Um animal rebaixado. Eram duas.

Um macho e uma fêmea. Logo percebi. Deram a volta no arbusto bem próximo a nós e começaram uma pequena dança de acasalamento.

- Pegue aquele pau e mate eles. Ou enxote eles daqui.

Ela tremia. Ela tinha medo. E eu fascinado ao ver que os brutos também amam. Fiquei em pé, com o porrete e ela ajoelhada abraçando minhas coxas trêmulas. De longe a cena pareceria bonita. Mas de perto sentia-me uma figura quixotesca. E a chuva tornou-se uma tempestade.

Não consegui fazer absolutamente nada. Os olhinhos da fêmea se voltando para trás e o semblante de dúvida e resignação do macho foram definitivos. Eu nunca poderia matar algo ou alguém que ama. Que estavam prestes a fazer o que de mais sublime existe.

- Seu coalhira!

Ela saiu velozmente. Como corria essa garota! Parado fiquei. Estatelado no meio da chuva. Com um pau em cada mão. Soltei ambos. E virei de costas, respeitando o momento do casal que sem cerimônia se amava e guinchava.

Resolvi voltar correndo para casa. Depois de um quilômetro percebi que estava nu. Mas prossegui. Cheguei molhado, cansado, pelado e decepcionado.

- Meu filho? O que é isso?

- Uma tempestade, mãe, não viu?

- Você está todo queimado, e onde está o seu calção?

- Ficou com a mucura. Assim como o meu coração.

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 26/03/2008
Código do texto: T917476
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