Segredo é para se guardar

Jovem ainda fui estudar no Rio de Janeiro e após minha formatura, sempre que possível, dava um jeito de ir para minha cidade, no interior mineiro, visitar meus pais.

Papai era médico e fazendeiro. Ele e mamãe, apesar dos filhos criados e quase todos morando fora, se obstinavam em permanecer em sua cidadezinha. Gostavam da calma interiorana e, nas pouquíssimas vezes que consegui convencê-los a passar comigo uma temporada na capital, tive que enfrentar a longa viagem para leva-los de volta. Eles adoravam as belezas do Rio de Janeiro entretanto amavam a mesmice da roça.

Naquele tempo, fins dos anos 40 início da década de 50, a vida no interior era muito precária. Luxo mesmo era luz elétrica e telefone que havia em nossa casa. Um dos dez da cidade.

Apesar de possuírem mais dinheiro que a maioria das pessoas de nossa cidade meus pais lutaram para me manter estudando na capital porque, comigo, eram 14 filhos e todos tivemos sempre de um tudo. Exatamente por isso, sempre que voltava ao interior, fazia questão de presentear-lhes com aquilo que eles conseguiam regularmente no comércio local. A cada viagem, dentre outras coisas, enchia meu enorme carro americano com várias latas de azeite português, vinhos italianos e franceses, garrafas de vinho do Porto, azeitonas chilenas, salame italiano, charutos cubanos (que papai amava), queijos finos, cortes de tecido, sapatos da Casa Clark que eram o máximo numa cidade onde, de cada dez pares de calçados vendidos, nove eram botinas. Nunca podia faltar uma caixa do bacalhau verdadeiro bacalhau, adorado por mamãe e odiado por mim que, após cada visita, ficava dias e dias com o carro impregnado de seu cheiro.

Após uma dessas visitas, logo que cheguei ao Rio de Janeiro, recebi um telefonema alarmado de meu pai. Ele me contou que alguém havia invadido nossa casa e furtado muito daquiloo que eu havia levado. Ele estava constrangido e eu fiquei arrasado com a notícia. Não pelo valor monetário do que havia sido furtado porque, para mim que ganhava muito bem em minha banca de advocacia, aquelas compras não representavam muito para mim. Também não foi pelo fato de saber que aquilo que havia comprado com carinho e enfrentado uma longa viagem para agradar meus pais havia sido surrupiado. O que me deixou muito irritado com a notícia foi tomar ciência da falta de respeito contida no ato. Meu pai, após estudar na capital, voltou para o interior e resolver exercer sua profissão por lá. Trabalhou muito, e muitas vezes de graça, pelo prazer de levar alívio e cura a quem necessitava. Era, com certeza, a figura mais conhecida da cidade e, talvez, a mais respeitada. Quem teria a ousadia de cometer um ato daqueles ?

Nossa casa era muito grande e possuía um enorme quintal. Nele, separado da construção principal, papai construíra um cômodo amplo e arejado para servir de despensa. Neste cômodo haviam sido guardadas as encomendas. Foi ele aberto com habilidade e dele retirado o que eu havia levado.

Algum tempo depois, voltando a visitar meus pais, levei nova encomenda e, de quebra, um fortíssimo cadeado que eu mesmo instalei. Poucos dias após meu retorno ao Rio de Janeiro fiquei sabendo de novo furto. Agora era demais. O caso exigia providências enérgicas. A polícia foi comunicada e um inquérito aberto mas, apesar da materialidade do crime, não se chegou à autoria.

Poucos meses depois retornei ao interior e, dessa vez, disposto a passar algum tempo para tentar descobrir o safado que estava furtando meus pais e, eu mesmo, dar-lhe uma lição.

Após uns três dias cidade, resolvi levar meus pais e minha irmã que morava com eles para passar o dia na fazenda. Era domingo. Conclui que, assistida a missa e com todos tirando uma pestana após o almoço, em plena luz do dia ninguém se atreveria a tentar um novo roubo. Chegamos em casa perto da oito da noite e ficamos na cozinha, ao pé do fogão de lenha, tomando um café e proseando. Nessa hora minha irmã mais nova veio do quintal pálida e contou que mais uma vez a porta da despensa havia sido arrombado e, dessa vez, levaram tudo que eu lhes levara e o que já se encontrava lá.

O mal-estar na família foi horroroso.

Uns três ou quatro dias depois, quando me preparava para voltar ao Rio de Janeiro, apareceu um vizinho e grande amigo de meu pai, e que foi escolhido para seu meu padrinho de batismo. Veio se despedir. Ele desde o primeiro momento se prontificou a ajudar na vigilância de nosso quintal de sorte a identificar e capturar o ladrão que nos atormentava. Como sempre conversamos muito. Quando se despedia virou-se para mim e disse que ficara muito chateado com o roubo do domingo mas sabia que mais cedo ou mais tarde o ladrão seria encontrado. Eu, baixando bem o tom da voz, disse que também alimentava essa esperança e, colocando uma pá de cal na questão, revelei que não contara do furto para ninguém.

Dario Castellões
Enviado por Dario Castellões em 30/12/2005
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