O fantasma

.:.

Nos idos da década de 80, havia um chefe de guarnição de socorro que não tinha receios no seu mister de salvar vidas e riquezas. Homem destemido, o sargento Porfírio era um ícone dentro da Corporação e servia de exemplo para os modernos, recém ingressos na vida militar. Ao redor do nome Porfírio havia dezenas de histórias ontológicas; salvamentos apoteóticos eram atribuídos a ele; por força do destino (ele era um predestinado), também participara dos grandes incêndios ocorridos na capital, dando idéias geniais e contribuindo decisivamente para o sucesso das operações; alguns repórteres da cidade, sempre que se deparavam com uma situação de grave risco, perguntavam aos militares envolvidos na operação se o Porfírio estava de serviço – ele era o divisor de águas entre nós.

O chefe de uma guarnição de Bombeiros é o equivalente ao comandante de uma patrulha da Polícia Militar, guardadas as devidas peculiaridades de cada um desses serviços específicos da Segurança Pública brasileira.

Nos anos oitentistas, o chefe de guarnição seria ‘o cara’, propriamente dito. Afinal, quem não recorda do poder do qual se revestia o sargento da PM quando saía às ruas, comandando as inesquecíveis ‘pretinhas’, aquelas máquinas tipo fusca, turbinadas, que amedrontavam a bandidagem local? Havia também a figura do Cabo comandante de patrulha. Esse povo tinha poder! Quando os marginas da época escutavam o som estridente da pretinha não se atreviam a desafiar o Estado. Tempos bons... Ah! Que saudade. A autoridade de um sargento era tamanha que certa vez, numa cidadezinha do interior, por ocasião de uma festividade muito concorrida, o capitão comandante do Batalhão de Polícia da região foi convidado a comparecer. O oficial pôs a túnica e se dirigiu ao local do evento. Lá, curiosos observavam o novo militar, homem novo e todo garboso, desfilando com o uniforme de gala da Corporação. Entre olhares e elogios, um dos convidados comenta:

– Eita que farda bonita da porra! Pena que não tem as três lapas aqui no braço como as que o sargento usa!

No Corpo de Bombeiros o garbo era o mesmo e a figura do sargento estava revestida de toda uma mística transcendente. Voltemos ao assunto inicial, finalmente.

Certo dia, ele, ‘o cara’, assistindo a um filme de terror, varou madrugada adentro. Era noite fria, escura e chovia muito. Após o término da exibição, deitou. Enquanto dormia, repassou certamente as imagens do filme, num processo de automatismo inconsciente de uma mente conturbada pela força da trama.

As horas se passaram. Em determinado momento da madrugada, surgiu no interior das dependências onde dormia o valente chefe, o bombeiro rondante da hora. O subordinado, de cor morena, olhos brancos e vestindo uma capa de chuva de cor preta, acorda o chefe. Ao acordar, ele, Porfírio, abre os olhos e avista algo. Não se controlou. Saiu em disparada rumo ao pátio interno do quartel, gritando: FANTASMA! FANTASMA!

Os bombeiros de serviço acordaram com o estarrecedor alarme quando, por fim, o fantasma apareceu, dizendo:

– Chefe, sou eu, SD 667 Patronato, rondante da hora! Há uma ocorrência e todos já correram para a viatura. O senhor não vai?

Os homens do fogo ainda não conseguiram olvidar o episódio nem as inúmeras homenagens devidas ao glorioso e soberbo Porfírio, mas ‘o cara’, em detrimento de todo um passado de glória, hoje é mundialmente conhecido pela alcunha de “O chefe das almas”.

Do meu livro 'Lapso temporal'