OUVIDO FOFOQUEIRO

O ouvido absoluto é um dom que não deve ser desprezado e aqueles que foram abençoados com tal dádiva aproveitam

os deleites de uma boa música, seja numa sinfonia, em um bom CD ou no gorjear de um pássaro mais assanhado querendo arrebanhar mais uma amada.

O apartamento não era lá essas coisas mas servia para que Esmeraldo se recolhesse ao final do dia para um bom descanso. A família estava longe dos olhos mas bem pertinho do coração; principalmente Dona Júlia, sua orelha nos dias de frio e em noites de ardor. Apesar de fazer muito calor, sua falta era muito sentida e o Esmeraldo já não sabia o que fazer para espantar o tédio quando a TV já não saciava mais seus desejos de diversão numa boa prosa e noutras atividades mais interessantes. A vista da janelinha não ajudava muito pois o carro do lixo há muito não dava as caras por aquelas bandas e um Jangurussú(nome do lixão da cidade) já se avolumava no quintal. As promessas do dono da quitinete eram tal e qual conversa de vendedor de carro. A rotina seria quebrada quando num final de semana destes aportou por aquelas bandas um casal bem jovem com umas quinquilharias como mobília. O único móvel que realmente era reforçado era a cama; madeira de lei na armação e maçaranduba no estrado, deixando bem claro a principal atividade daquele par afinado. A entrega do material foi rápida e em pouco tempo a mobília já estava preenchendo os espaços vazios da sala que também servia de quarto e de cozinha.

Esmeraldo, assistiu a passagem de toda a mobília para o quarto que ficava bem acima do seu e em pouco tempo começou a ouvir uns ruídos estranhos quebrados aqui e ali por risadinhas curtas. Não deu muita importância e voltou para a velha TV na esperança do time do coração vencer sua partida fora de casa. Um forró a todo vapor no vizinho acabou de vez a tranquilidade daquela tarde sábado, em decorrência de umas latinhas de viscol a mais e outras tantas doses de uma cachacinha deliciosa, encontrada no empório do seu Euclides. Essa o "esmero" conhecia só no faro. Além do rádio estar com um dos auto-falantes estourados a música não era lá essas coisas, fosse ao menos a sua banda favorita; Avestruz no Leite, talvez estes detalhes passassem despercebidos.

A imagem da tv estava péssima como sempre, nem os chifres do Pergentino; vizinho da frente, mais parecidos com o de um alce canadense(pesam mais de vintes quilos) seriam suficientes para dar uma qualidade merecida no sinal, naqueles dias de descanso. Já ouvira falar de uma tal TV digital onde se diziam maravilhas da imagem e que não seria necessário utilizar antena tão possante. O jogo começou e sentado no cantinho do sofá, único local ainda firme para encostar as nádegas, adormeceu dado ao jogo de baixo nível técnico e ao péssimo treinador que assumira o time pela enésima vez, o Cimas. Já passava das dez quando despertou e resolveu descer um pouco para comer qualquer coisa na lanchonete do Ermenegildo, conterrâneo seu. O caldo foi deglutido com voracidade e após alguns minutos de prosa resolveu subir para assistir Corra no Sal, programa humorístico de sucesso. Foi aí que uma dádiva se transformou em pesadelo, pois com o silêncio quase total quebrado apenas pelo arrastar de chinelos de um transeunte ou outro pelo corredor, que os sons vindos do apartamento vizinho se transformaram em pesadelo. Dava prá ouvir tudo, até as promessas infinitas e juras de amor eterno, decerto contadas bem no ouvidinho da amada. Algo havia sido rasgado e o rebolo era medonho lá em cima. Talvez as vestes da Matilde não fossem tão resistentes aos apelos hormonais do Tião que partia decerto como um touro ao encontro da pélvis alheia e o som dos ossos da bacia em choque eram ouvidos com absoluta clareza. Esmeraldo já estava há alguns dias sem a presença de sua amada e foi ficando empolgado, ouvia tão bem que parecia que tudo estava acontecendo ali do seu lado. Dona Júlia só voltaria na semana seguinte e o esmero aproveitou o embalo do jovem casal aliado a sua audição privilegiada para dar conta também de seus desejos.

Todo dia tinha festa no apê lá de cima, era só o casal chegar que Esmeraldo se despedia rapinho do bate papo com alguns amigos no quiosque e já partia firme rumo ao lar, para tirar proveito também daqueles momentos íntimos. Já se sentia parte daquela família pois conhecia todos os seus segredos. Conhecia até as posições favoritas do imbrólio amoroso. E toda a semana foi assim. Esmero já estava com olheiras, era difícil acompanhar o ritmo dos jovens e estava até se sentindo um pouco debilitado.

Fim de semana chegou e Dona Júlia já estava cedinho na sua porta de mala e cuia. Vinha com muitos planos e desejos também de matar as saudades. Foi só desarrumar a bagagem que partiu ao ataque, ocasionando espanto no pobre esmero que já estava sem gás devido a semana atribulada e dedicada ao onanismo com a ajuda do casal vizinho. Dona Júlia tivera umas aulinhas de dança do ventre com uma professora chegada recentemente de São Paulo e que aportara na sua cidade com idéias revolucionárias para as balzaquianas. A patroa a mil e o pobre Esmeraldo nadica de nada. Nem com escora e reza forte o negócio funcionou. Dona Júlia não teve dúvidas o safado já tinha arrumado uma rapariga, bem que a professora tinha falado do perigo de um homem solteiro na cidade grande. A confusão foi grande e ela sem pensar muito, talvez fruto das madeixas loiras; arrumou novamente as malas e voltou prá casa certa da infidelidade do ex-companheiro. Esmeraldo não teve como se explicar e nem poderia. Maldito ouvido.